Não sou a favor do aborto, definitivamente! Entretanto o presente texto parece ser muito importante pois trata-se de questionar uma atitute simplista e fácil de ser tomada, fundada em dogmatismo e pré- conceitos não históricos. A simplicidade da mensagem amorosa de Jesus precisa se encarnar na real complexidade da vida concreta de nossa humanidade, reconhecendo o diferente, o inusitado, os dramas reais e vitais de pessoas concretas em contextos nem sempre fáceis de serem vividos. Julgar não é nosso departamento, mas um amar compassivo. Contextos vitais que, normalmente, ocorrem em decorrência de uma sociedade injusta e estruturalmente pecadora onde, senão somos os mais beneficiados, somos omissos em nossa atuação pessoal e social. Vale refletir de uma forma menos superficial e dogmática.
Gerar vida e gerar morte - Ivone Gebara
Segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012 - 20h37min
por Adital - Notícias da América Latina e do Caribe
Ivone Gebara é co-autora do livro Terra - Eco Sagrado.
Espanta-me a facilidade como alguns clérigos e bispos
afirmam poder distinguir com clareza as forças que geram vida e as que
geram morte. Discorrem como se estivessem num campo de certezas. Nem
percebem que o próprio uso dessas duas palavras principalmente nos seus
discursos acalorados sobre a importância de escolhermos a vida conduz
quase necessariamente a defender armadilhas de morte e provocar formas
sutis de violência. O que é vida? O que é morte? É possível que a morte
se sustente fora da vida e a vida fora da morte? Não somos nós vida e
morte ao mesmo tempo? Não somos sempre aprendizes, caminhando trôpegos,
dando um passo depois do outro nas escolhas diárias que tentamos fazer?
Faz algum tempo que a Igreja Católica no Brasil vem
desenvolvendo uma linha equivocada de defesa da vida. Quando falam da
defesa da vida reduzem o termo vida à vida do
feto humano e, assegurados da vida do feto esquecem-se de todos os
outros aspectos e personagens reais da complexa teia da vida. Fico me
perguntando de novo porque insistem nesse erro e nesse limite lógico
condenado também de muitas maneiras pelos muitos filósofos e teólogos da
Tradição Cristã. Distanciam-se até das últimas reflexões de Bento XVI
que, com justeza, discorre sobre a complexidade da vida no universo,
incluindo-se a vida humana.
Espanta-me constatar mais uma vez a pouca formação
filosófica e teológica de parte do episcopado e de muitos clérigos que
se arvoram a defender a vida, mas atiram pedras em pessoas que
consideram "mal-amadas" só por defenderem um ideário diferente do seu.
Por que "mal-amada" ou "mal-amado" seria uma forma de menosprezar ou
diminuir as pessoas? O que defato querem dizer com isso?
Não somos todos nós necessitados de amor? Não é o
amor a missão cristã? Não é para os desprezados, esquecidos e mal-amados
que o Cristianismo diz manter sua missão a exemplo de Jesus? É
desconcertante perceber que usam expressões desse tipo e
instrumentalizam a mensagem cristã para afirmar desacordos de posições,
como o fez D. Benedito Simão, bispo de Assis e Presidente da Comissão
pela vida do Regional Sul I da CNBB. Em entrevista ao Grupo Estado de
São Paulo na semana passada, por ocasião da escolha da Professora e
Doutora Eleonora Menicucci como ministra da Secretaria de Políticas para
Mulheres, o referido bispo classificou a nova ministra de "mal-amada"
e, com isso desrespeitou-a e incitou ao desrespeito e à falta de diálogo
em relação à responsabilidade pública de enfrentar os sérios problemas
sociais.
Seria o bispo então um privilegiado "bem-amado"? A partir de que critérios?
O desrespeito às histórias e escolhas pessoais, às
muitas dores e razões de muitas mulheres torna-se moeda corrente em
muitas Igrejas cristãs que se armam para uma chamada "guerra santa" sem a
preocupação de aproximar-se das pessoas envolvidas em situações de
desespero. Usam sua autoridade junto ao povo para gritar palavras de
ordem e em nome de seu deus confundir as mentes e os corações.
Perdeu-se a civilidade. Perdeu-se o desejo de
consagração à sabedoria e ao bom senso. Perdeu-se a escuta aos
acontecimentos e à aproximação respeitosa das dores alheias. Apenas se
responde a partir de PRINCÍPIOS e de pretensa autoridade. Mas, o que são
os princípios fora da vida cotidiana das pessoas de carne e osso? Qual é
o teto dos princípios? Quem os estabelece? Onde vivem eles? Como se
conjugam nas diferentes situações da vida? O convite ao pensamento se
faz absolutamente necessário quando as trevas da ignorância obscurecem
as mentes e os corações.
Nesse momento crítico de descrença em relação a
muitos valores humanos, as atitudes policialescas de um ou mais bispos,
de clérigos e pastores, assim como de alguns fiéis nos apavoram. A
ignorância das próprias fontes do Evangelho e a instrumentalização da fé
dos mais simples nos espantam. A democracia real está em risco. A
liberdade está ameaçada pelo obscurantismo religioso.
De nada servem palavras como diálogo, escuta,
conversão, solidariedade, respeito à vida quando na prática é a
violência e a defesa de ideias pré-concebidas que parecem nortear alguns
comportamentos religiosos públicos. Seguem esquecendo que não se deve
tomar Deus em vão. Não apenas seu nome, pois isto, já o fazem. Tomar
Deus em vão é tomar as criaturas em vão, selecionando-os,
desrespeitando-as e julgando-as de antemão. Nós todas/os temos palhas e
traves em nossos olhos e eu sou a primeira. Por isso, cada pessoa ou
grupo apenas consegue ver algo da realidade, que é sempre maior do que
nós. Entretanto, se quisermos enxergar um pouco mais, somos convidadas a
nos aproximar de forma desarmada dos outros.
Somos desafiadas a ouvir, olhar, sentir, acolher,
perguntar, conversar como se o corpo do outro ou da outra pudessem ser
meu próprio corpo, como se os olhos e ouvidos dos outros pudessem
completar minha visão e audição. E mais, como se as dores alheias
pudessem ser de fato minhas próprias dores e suas histórias devida
minhas mestras. Só assim poderemos ter um pouco de autoridade com
dignidade. Só assim nossa belas palavras não serão ocas. E, talvez,
nessa abertura a cada dia renovada, poderemos acreditar na necessidade
vital de carregar os fardos uns dos outros e esperar que a fraternidade e
a sororidade sejam possíveis em nossas relações.
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