Cabe a nmós, cristãos, refletirmos sobre nossos atos e omissões. Aviolência segue acontecendo aos nossos olhos, à nossa frente, aos nossos pés e insistimos em não ver e em não fazer nada. até que chegue a nossos corações, nossos filhos, nossa vida. Até quando Senhor? Até quando levaremos uma vida idólatra, escravos que somos do consumismo, da estética, do conforto e dos bens que exigemum consumo sempre maior de insumos naturais, da eletricidade, da poluição, de gerarmos morte por onde andarmos? Até quando permitiras nossa cegueira e nossa mudez, enquanto tantos e tantas passam fome - de pão, de comida, de justiça, de valores, de testemunhos verdadeiramente cristãos? Acorda nossa alma, sacode nosso corpo, estremeçe nossas vidas mesmo à custa de sofrimento e angústias pois a vida clama por Ti.
O povo "à jusante" de Belo Monte - Dom Erwin Kräutler
Sexta-feira, 13 de abril de 2012 - 19h03min
Há doze dias vivo a bordo do barco "Teresinha". Estou
visitando as comunidades do interior de Porto de Moz. Não há telefone e
muito menos existe acesso à Internet. Faz um bem enorme ficar de vez em
quando sem essas comodidades. Tem-se a impressão de estar em outro
planeta. Mas as pessoas queridas que encontro ao longo da viagem e que
há décadas conheço e amo são a prova de que continuo no mesmo planeta
Terra e na "minha terra" que é o Xingu. A primeira vez que singrei as
águas dos rios, furos e lagos de Porto de Moz foi em janeiro de 1968.
Lembro os antepassados do povo que agora me abraça. Revejo em muitos
rostos os traços de seus avós. Antigamente as famílias vieram a remo.
Hoje um motor "rabeta" diminui mais o tempo da viagem. Mesmo assim têm
que enfrentar, às vezes por horas, um sol escaldante ou chuvas
torrenciais.
O encontro com o bispo segue sempre o mesmo esquema.
Começa com abraços, cantos, poesias, salva de palmas. Um ambiente
festivo e descontraído, sem formalidades, etiquetas e protocolos.
Sinto-me em casa. "Vós todos sois irmãos" (Mt 23,8). Também o bispo é
irmão! É nestas ocasiões que mais me realizo como pastor, no meio dessa
gente que amo e que - eu sei disso - também me ama. Todo mundo se
conhece. Essa é uma das mais belas características das Comunidades
Eclesiais de Base. Não há estranhos.
Faço questão de primeiro ouvir o povo, escutar a sua
história, ser informado a respeito de suas esperanças e angústias,
avanços e derrotas. São coisas alegres, estórias pitorescas, "causos"
que partilham comigo, mas também assuntos tristes, experiências
dolorosas. Sempre me admiro que esse povo, apesar de viver uma vida dura
e penosa, nunca perdeu a alegria. Sabe sorrir! Aliás, que sorriso
límpido, espontâneo, cativante! Nada postiço, só para agradar o bispo.
Falam do salão comunitário que conseguiram construir,
da capela que pintaram, das reuniões semanais, do culto dominical e da
novena que não deixaram de celebrar. Revelam também problemas
familiares. Alguém denuncia a invasão de geleiras para roubar o peixe,
até na época da piracema. "Vem com malhadeiras de malha tão fina que nem
alma passa". Outro relata com orgulho experiências que fazem com as
Reservas Extrativistas comunitárias, mas reclama do IBAMA que cai em
cima deles por causa de uma tartaruga que pegam, enquanto faz vistas
grossas diante das geleiras, do escandaloso roubo de madeira, de
desmatamentos e outras agressões ao meio-ambiente, como por exemplo Belo
Monte. "Aí dá até todas as licenças para acabar com o nosso Xingu".
Passo, em seguida, do papel de ouvinte para
entrevistado. Jovens e adultos me bombardeiam com perguntas de todo
tipo. Assuntos internos da comunidade, do setor, da paróquia, mas também
da "conjuntura" econômica e política. Em todas as comunidades, a
pergunta principal é sobre Belo Monte. Querem saber detalhes, já que o
bispo vem de Altamira, do centro do monstruoso projeto.
"Bispo, será que ainda tem jeito de impedir essa
desgraça? Ouvimos falar que estão tocando Belo Monte a todo vapor. Dizem
que o governo já gastou muito dinheiro e assim certamente não dá mais
para parar a obra. Que o Sr. acha?"
O que realmente devo responder a esse povo? Decido "abrir o verbo", sem meias-palavras:
"Verdade é que um rolo compressor está passando por
cima de todos nós. A promessa que Lula pessoalmente me deu no dia 22 de
julho de 2009, segurando-me no braço e afirmando "Não vou empurrar este
projeto goela abaixo de quem quer que seja" foi pura mentira. Falou
assim para "acalmar" o bispo e livrar-se deste incômodo religioso que
recebeu em audiência. O governo empurra sim Belo Monte goela abaixo! E
Altamira virou um caos em todos os sentidos. Nada do prometido
saneamento básico, uma das condicionantes do IBAMA para dar licença para
iniciar a obra! Não tem leito nos hospitais, não há vaga nas escolas,
homicídios na ordem do dia, prostituição a céu aberto no centro da
cidade. Os aluguéis de uma casa simples pularam de 300 para 2.000 Reais.
Os preços de alimentos triplicaram. O transito é uma calamidade.
Acidentes a toda hora".
"O que mais vou dizer a vocês? Fui várias vezes "ver"
o canteiro de obras, quer dizer, queria ver, porque não me deixaram
entrar, mas vi de longe os estragos já irrecuperáveis. Rezei missa com
as comunidades ameaçadas de despejo. Os grandes fazendeiros receberam
indenizações, mas o coitado do pequeno produtor e agricultor não sabe o
que vai ser dele e de sua família. Arrasaram com uma vila inteira: Santo
Antônio. O pessoal da Norte Energia é para lá de arrogante. Se o colono
não desocupa o seu sitio, a Justiça dá ordem de despejo e manda a
polícia em cima do pobre, pois a Norte Energia considera toda a região
propriedade sua e os moradores, que lá vivem desde os tempos do bisavô,
invasores."
"E para onde vai toda essa gente?"
"Pois também eu quero saber. Prometem solução, mas nunca dizem que tipo de solução, onde, quando, de que jeito."
"E o povo de Altamira?"
"Muita gente está com o coração despedaçado. Até
comerciantes e empresários que antes colaram em seus carros adesivos
"Queremos Belo Monte" andam hoje cabisbaixos. Quem pode contra a fúria
da "Norte Energia"? Aliás "Norte Energia" é o próprio Governo, antes
Lula, agora Dilma. Nunca houve diálogo com o povo daqui, nem com índios,
nem com ribeirinhos, nem com o povo da cidade. O governo traiu o povo
que o elegeu e ri-se de quem defende os índios, os ribeirinhos, os
pobres atingidos pela barragem. Fala de preço a ser pago pelo progresso.
Só que esse preço sacrifica o nosso povo e não as famílias de políticos
em Brasília. Um terço de Altamira vai para o fundo e o resto vai ficar à
margem de um lago podre, criador de carapanã e causador de dengue e
malária".
"E os índios? É verdade que estão a favor da barragem?"
"Não digo que estão a favor da barragem, estão a
favor dos presentes que recebem. Muitos deles que antes viviam
abandonados pelo governo e entregues à própria sorte, hoje têm todas as
contas pagas no comércio, recebem cestas básicas e combustível e outros
benefícios. O governo que negou aos índios se manifestarem em oitivas
previstas em lei, agora se esmera em entupi-los de dinheiro para
fechar-lhes a boca. Antigamente enganou-se os índios com espelhos e
bugigangas, hoje milhões de reais são injetados nas aldeias para
paralisar a luta indígena e cooptar as lideranças. O preço é muito alto.
Não se mata mais índio a ferro e fogo. O dinheiro farto é a punhalada
traiçoeira no coração das culturas indígenas e de sua organização
comunitária. E o governo afirma em alto e bom som que nenhuma aldeia
será alagada. Aldeia não será alagada, sim! O que a Norte Energia faz, é
cortar a água aos índios e ribeirinhos da Grande Volta do Xingu. E o
povo da Volta Grande vive e sobrevive da pesca. E tem mais. O que vai
acontecer com uma aldeia a poucos quilômetros do canteiro de obras onde
trabalham milhares de homens? É muito triste! Dá dó!"
"E nós? Como é que nós vamos ficar, nós que moramos
abaixo da futura barragem? Ou, como essa gente de Brasília fala, 'à
jusante'?"
"Bem, vocês sabem o que acontece se fazem uma tapagem no igarapé. Acima da tapagem, o que acontece?"
"O igarapé alaga a terra firme!"
"E abaixo da tapagem?"
"Ora, o igarapé seca!"
"Pois é. O Xingu abaixo da barragem vai baixar de
nível e os igarapés e afluentes também. Há trechos em que o Amazonas vai
entrar no leito do Xingu e nossos peixes que não se dão com a água
barrenta do Amazonas vão morrer."
Por um bom tempo o povo ficou apenas me olhando e não
me fez mais nenhuma pergunta. Também a conversa já passou da hora. Já é
hora de almoço.
A celebração eucarística está programada para as 14
horas. A liturgia está preparada, os cantos escolhidos e as leituras
ensaiadas. "Vai ter crisma" avisa-me uma catequista "e a turma precisa
ainda se confessar com o bispo". Nada de vexame! Aqui ninguém é escravo
do relógio. Terminada a confissão, outra catequista me informa: "As
meninas precisam ainda se empiriquitar". Já são lindas por natureza, de
traços indígenas ou ascendência negra, mas querem realçar ainda mais sua
beleza. Há também senhoras entre as crismandas, com crianças pequenas.
Uma me pergunta se pode, mesmo gestante, crismar-se. "Sem dúvida,
querida! O Espírito Santo descerá sobre você e a criança debaixo de seu
coração!" Apresento os crismandos a toda a comunidade chamando cada
um(a) por seu nome: "Senhor, aqui estou!" é a resposta às vezes bem
forte, outras vezes um pouco tímida, acanhada. Depois de dois anos de
preparação para o sacramento, sabem que a resposta que recorda o que o
Profeta Isaias falou quando Deus o chamou: "Eis-me aqui, envia-me" (Is
6,8) significa o compromisso publicamente assumido com a comunidade. No
rito da imposição das mãos convido também catequistas e dirigentes para
realizar comigo este gesto que remonta ao tempo dos apóstolos quando
enviaram discípulos para anunciar e testemunhar o Evangelho (cf. At
13,1-4). Durante a unção com o santo crisma a madrinha ou o padrinho
coloca "a mão com que assina o nome" no ombro da afilhada ou do afilhado
selando com este gesto uma aliança: "Você pode contar comigo, não
apenas hoje, mas pelo resto da vida!". Estou convicto de que muitos
padrinhos e madrinhas realmente assumem um compromisso sério e não estão
aí como personagens mudas que entram em cena só para figurar. Dou-me
conta disso especialmente quando, depois da unção, a crismada ou o
crismado pede a bênção de sua madrinha, de seu padrinho. É um momento
comovedor. Graças a Deus, o nosso povo não tem vergonha de mostrar suas
emoções.
O mais lindo nestas viagens, além do encontro com
esse povo bom e simples, é conviver tão de perto com a criação de Deus.
Doze dias se foram, desde que partimos de Altamira. A última noite da
viagem passamos ancorados na boca do Rio Maxipanã, afluente do Xingu
abaixo de Souzel. Chegamos ao entardecer. Cedo atei a minha rede. Noite
calma e tranquila, sem carapanã. Acostumei-me a acordar antes do sol
raiar e assim desfruto sempre do privilégio de ver o dia nascer.
Como é sublime essa hora matutina. As estrelas deixam
de cintilar. As trevas se dissipam. O céu no oriente começa a
alvorecer, mas a escuridão ainda predomina. A rubra claridade da aurora
enfrenta as trevas. De minuto em minuto a cor purpúrea é mais suavizada
com tonalidades acajus e alaranjadas.
O rio ainda dorme. Exala uma bruma esbranquiçada que cobre, como se fosse um véu, a várzea.
Na terra-firme da outra margem guaribas já uivam seu
louvor matinal ao Criador. Cada bando tem o seu "capelão". É barbudo.
Aqui o chamam de "gorgo". Dizem que as fêmeas permanecem em piedoso
silêncio enquanto os gorgos bradam seu salmo milenar. De repente param,
como se Deus tivesse lhes passado uma ordem. Silêncio.
Agora se ouve melhor o canto dos pássaros com suas
melódicas modulações, umas mais graves e fortes, outras mais contidas e
suaves. Chilreiam suas cantigas, também milenares. Um é apelidado de
"peito de aço" porque seu assobio é tão forte que assusta a quem estiver
por perto. Ouve-se o arrulho esperançoso das rolinhas. Pombinhas
selvagens gorjeiam animadas sua saudação ao novo dia. Lá longe uma voz
solitária e monótona de uma ave que não sei identificar. Sua cantiga
parece com o cuco, aquele pássaro dos Alpes que canta só na primavera.
Falam mal dele. Dizem que bota seus ovos em ninho alheio para outra mãe
chocar. Não assume a responsabilidade por seus filhotes. Em vez de ficar
preso ao ninho, imóvel em cima de ovos, prefere curtir uma vida de
vagabundo e voar desimpedido para cantar aqui e acolá.
O sol já alcançou altura, mas ainda é um disco pálido
por trás da neblina. Cada vez mais impõe o seu fulgor. Enquanto o
primeiro raio não rasgar a cortina, pode-se vê-lo a olho nu. A bruma
rapidamente se desvanece e o rio, a selva e os campos à sua margem,
respiram o ar límpido de uma manhã ensolarada. O Maxipanã revela agora
sua cor clara, contrastando com o verde-esmeralda do Xingu e a floresta
ostenta sua fascinante exuberância nas múltiplas matizes de seu verdor.
Que maravilha! "Os céus narram a glória de Deus, e o
firmamento proclama a obra de suas mãos. O dia transmite a mensagem a
outro dia, e a noite conta a notícia a outra noite" (Sl 18,2-3).
Pena que os homens não se deixam mais encantar pela
obra de Deus. Vedaram seus olhos e taparam o ouvido. Não enxergam mais
as flores, nem ouvem mais o canto dos passarinhos. O sol e lua não
nascem, nem se deitam mais! É a rotação do planeta Terra, pronto!
Contemplar a natureza é perder tempo e dinheiro. Tudo é matéria prima
para fazer negócios. Tudo vira mercadoria a ser explorada, ser comprada e
vendida, exportada e consumida! Por isso os homens derrubam e queimam a
floresta, represam e sacrificam os rios, assassinam os animais da mata,
envenenam as plantas e os pássaros.
Os homens perderam o coração. Tornaram-se insensíveis, brutos, cruéis. Decidiram matar a vida.
Boca do Rio Maxipanã, São Pedro, março de 2012
Erwin Kräutler
Bispo do Xingu
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