APRESENTAÇÃO

Textos e silêncios pretende ser um espaço reflexivo ecumênico, fundamentalmente voltado para a vida concreta das pessoas a partir de textos e livros, mas também do caminhar contemplativo e meditativo, da vivência amorosa e solidária dos que, de alguma forma, partilharam comigo suas vidas, dores, sofrimentos e esperanças. A eles - e a vocês - devo a minha vida, o olhar que desenvolvi de existência e a experiência cristã do encontro com o Cristo servidor que nos salva. A eles sou devedor, minha eterna gratidão.

sexta-feira, 20 de julho de 2012

Quanda a Igreja vira circo!!!!!

Quando a Igreja vira circo
Sexta-feira, 20 de julho de 2012 - 0h37min
Era o mês de julho do ano de 1963 e eu não tinha ainda completado sete anos de idade. Em Araci (Bahia), minha cidade natal, celebrava-se uma festa de arromba: o Jubileu de Ouro do Apostolado da Oração da paróquia. Naquela época Araci era uma cidade pequenina formada apenas por três praças e menos de uma dezena de ruas. O município, com população quase toda rural, não passava de alguns milhares de habitantes. A cidade não tinha pároco e o padre vinha de vez em quando de Serrinha, a paróquia vizinha, situada a 36 quilômetros de distância. A região estava sendo assolada por uma seca que já durava quase três anos. Mesmo assim a festa aconteceu e o povo acorreu numeroso para participar, apesar de todo o sofrimento.
A abertura da festa se deu com a chegada do bispo diocesano de Feira de Santana (BA). Era a primeira vez que eu ia ver um bispo e nem sabia naquela época o que isso significava exatamente. Como toda criança, corri curioso, ao lado de meu pai, para a Praça da Matriz para ver a chegada de Sua Excelência. Fiquei impressionado. Uma figura imponente e vestida solenemente; usava luvas e sapatilhas e carregava atrás de si uma longa cauda, que era mantida suspensa a certa altura do chão por alguns caudatários. Entre esses caudatários estava um jovem seminarista, filho da minha terra e meu parente.
O bispo fez um discurso inflamado, rebuscado de frases em latim. Todos os presentes aplaudiram o "bom pregador", embora quase ninguém tenha entendido nada, especialmente aquelas frases ditas na "língua da missa" que só o sacristão Zequinha, seu ajudante Agenário e a professora Dona Marieta - a mulher que tocava o harmônio da igreja - entendiam um pouco. Depois disso, o bispo deu a bênção do Santíssimo Sacramento, rebuscada com mais latim, o "Tantum Ergo Sacramentum". A festa continuou por uma semana inteira: missas, pregações, confissões, batismos, casamentos e muito foguetório. Depois o bispo voltou para a sede da diocese, os missionários foram embora e o povo retornou para as suas casas. A vida voltou ao normal: luta contra a seca, fome, sede e miséria. "Seja o que Deus quiser", repetia conformado o povo dos pobres. 
Quando a festa do Jubileu do Apostolado aconteceu, já tinha sido realizada a abertura do Concílio Vaticano II. Porém, tudo continuava sendo realizado no "velho rojão", como se dizia então. Missa em latim, de costas para o povo e sempre pela manhã; celebração dos sacramentos numa "língua embolada"; o povo sem entender nada. Em minha cidade a primeira missa em português foi celebrada na tarde do dia 1º de janeiro de 1965. O presidente da celebração, um velho frade capuchinho, quase não conseguia pronunciar as palavras em português, de tão acostumado que estava com as velhas fórmulas decoradas em latim.
O tempo passou, entrei para o seminário e passei a conhecer vários bispos. Morei sete anos na Itália. Lá vi cardeais, bispos e padres vestidos com muita solenidade. Mas nunca mais tinha visto um bispo carregando uma cauda e vestido com tanta pompa. João XXIII e Paulo VI tinham simplificado as coisas, expurgando da Igreja e da liturgia os resquícios imperiais que as caracterizavam. O próprio Paulo VI renunciou à tiara e à "sedia gestatória", uma espécie de trono sobre o qual o papa se assentava e era carregado nos ombros de alguns homens. O Concílio Vaticano II renovou a Igreja, simplificou tudo, fazendo com que as comunidades cristãs retornassem à pureza do Evangelho e ao essencial. Pediu que a Igreja renunciasse às glórias mundanas, desse sinal de humildade e abnegação e, como seu Fundador, fosse pobre e estivesse ao lado dos pobres (LG, 8).
 A liturgia deixou de ser uma atividade exclusiva de padres para ser ação de todo o povo de Deus, o qual, por força do batismo, tem o direito e o dever de participar ativamente das celebrações (SC, 14). Pude ver então um dinamismo extraordinário nas comunidades cristãs, com o povo participando ativamente da liturgia. Dava gosto ver uma celebração e perceber as pessoas participando de muitos momentos. Os cantos litúrgicos eram entoados entusiasticamente por todas as pessoas presentes à celebração. As celebrações litúrgicas deixaram de ser ações privadas e realmente se converteram em celebrações da Igreja (ekklesía), passando, de fato, a pertencer ao "povo santo reunido" (SC, 26).
Mas o tempo passou, o Concílio foi sendo esquecido e "aposentado" e muita coisa "mofa" começou a voltar. Inclusive, para minha surpresa, as caudas dos bispos e cardeais e seus caudatários. E a coisa tem se complicado mais ainda porque a pós-modernidade chegou e atingiu de cheio as religiões, como nota sabiamente Bauman em seu livro O mal- estar-estar da pós-modernidade (Rio de Janeiro: Zahar). Além disso, a pós-modernidade, segundo David Lyon no seu livro sobre o assunto (São Paulo: Paulus), foi se infiltrando também no cristianismo, o qual se tornou um item de consumo, embora "delicadamente embalado". Assim sendo, as propostas cristãs foram se transformando em mercadorias, que podem ser compradas ou rejeitadas de acordo com os caprichos ou gostos consumistas de cada um. As lideranças, especialmente alguns padres, sucumbiram à sedução da tirania das imagens que passaram a serem usadas para seduzir as pessoas, especialmente as mais vulneráveis. Desta forma, tornaram-se profissionais do espetáculo e se utilizam disso para vender suas mercadorias religiosas e seus "kits de salvação", enchendo seus bolsos. As celebrações litúrgicas também foram transformadas em espetáculo, no qual alguns fazem o show, enquanto o povo permanece mudo e inerte.
Qual o resultado disso? Gilberto Dupas, citando Debord, em seu livro Ética e poder na sociedade da informação (São Paulo: Unesp, 2011) responde de maneira magistral: o espetáculo é "o herdeiro da grande fraqueza do projeto filosófico ocidental". De fato, "como a filosofia jamais conseguiu superar a teologia, o espetáculo é a reconstrução material da fantasia religiosa, a realização técnica do exílio, a cisão consumada do interior do homem. O espetáculo funciona ‘quase como uma forma de reconstrução material da ilusão religiosa. Ela já não remete para o céu, mas abriga dentro de si sua recusa absoluta, seu paraíso ilusório'" (p. 52).
Aplicando à Igreja e à liturgia o que disse Dupas, podemos afirmar que o espetáculo faz da Igreja um circo. Quando certos padres, e "presbiretes", viram palhaços, "cuspidores de fogo na Igreja", transformam celebrações litúrgicas em shows. Buscam na verdade minutos de glória fugaz para si, tratam a assembleia dos fiéis como uma massa de dementes e desvirtuam o espírito do Vaticano II. Com isso causam a alienação do fiel, o qual vira um mero expectador, levando-o a não mais participar plena e ativamente das celebrações e nem compreender e assumir a própria existência: a ser apenas um repetidor mecânico dos gestos de um padre animador de programa de auditório. Com isso o padre pop star não "remete as pessoas para o céu", mas as empurra para um "paraíso ilusório" revestido de pura fantasia.
Quando a Igreja vira circo ela se enfraquece porque deixa de contar com pessoas adultas na fé. Passa a ser uma Igreja infantil formada por "crianças" que são jogadas para cá e para lá pela artimanha de pregadores astutos (Ef 4,14). Na Igreja-circo as pessoas passam a acreditar em qualquer coisa, a multiplicar objetos e kits de salvação e a fetichizar tudo. A comunidade cristã não cresce e nem se dinamiza porque é alimentada pelo obscurantismo. Na Igreja-espetáculo, diferentemente do que se pensa, a incerteza passa a ser a regra e não há crescimento "sob todos os aspectos em direção a Cristo, que é a Cabeça" (Ef 4,15). Não existe mais uma fé sólida porque tudo está revestido de fragilidade em razão da debilidade dos espetáculos religiosos e da superposição de "mercadorias religiosas" propostas pelos animadores dos shows religiosos. A atenção dos fiéis não se volta mais para a pessoa de Jesus Cristo, mas para o fanático e obsessivo pregador de bobagens. A Boa Nova é substituída por outro evangelho (Gl 1,6) e o deus pregado é o "deus do ventre" (Fl 3,19), ou seja, a glória, o orgulho, a vaidade e o exibicionismo desses animadores de missas shows e de programas religiosos baratos e vazios.
José Lisboa Moreira de Oliveira Filósofo. Doutor em teologia. Ex-assessor do Setor Vocações e Ministérios/CNBB. Ex-Presidente do Inst. de Past. Vocacional. É gestor e professor do Centro de Reflexão sobre Ética e Antropologia da Religião (CREAR) da Universidade Católica de Brasília.
Adital

O sagrado como consumo, a idolatria em novas vestes!


CEBI

A vitória da teologia da prosperidade

Quinta-feira, 19 de julho de 2012 - 23h53min
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JOSÉ EUSTÁQUIO DINIZ ALVES - www.folha.com.br - 06.07.12, acessado em 12.07.12, às 04h
Quando eu era criança, mais de 92% da população brasileira era católica. Minha mãe, mulher de pouco estudo e muita fé, me levou para a primeira comunhão, para as missas dominicais e procissões. Ficou marcado na minha memória uma romaria que fizemos a Congonhas (MG), onde conheci demonstrações de catarse coletiva, além das estátuas de Aleijadinho.  Mas eu não segui os passos do catolicismo. Primeiro, porque não entendia as homilias dos cultos. Segundo, porque o mundo da mística cristã estava muito distante da realidade nua e crua da minha lida diária. A Igreja ajudava pouco.  Existia até uma certa rejeição. Uma brincadeira comum entre os meninos era dizer que "quem chegar por último é mulher do padre" -e era grande o esforço para não ficar para trás. E um pecado: confesso que nossa turma de garotos chegou a praticar bullying contra coroinhas, embora ninguém na época soubesse o significado da palavra. O fato é que a doutrina católica não foi a referência para o destino da maioria dos meus colegas.
Por meio do ensino público e laico, estudei e aprendi com Max Weber que a realidade da minha infância e adolescência era apenas um pequeno retrato do conflito entre o lado sagrado da religião e o processo de dessacralização do mundo. Considerando a teoria do sociólogo alemão, os dados do censo 2010 não surpreendem ao mostrar que o Brasil, embora mais evangélico, está ficando menos sacralizado. O discurso da "opção preferencial pelos pobres" da Igreja Católica não tem sido capaz de evitar o fim do monopólio católico no país. O que se difunde no Brasil é a doutrina de Joãozinho Trinta: "Pobre gosta é de luxo".
A lógica econômica tem prevalecido sobre a dinâmica puramente religiosaA teologia da prosperidade tem atendido melhor as expectativas de consumo e os interesses egoísticos das diferentes camadas sociais. Como disse o sociólogo Flávio Pierucci em artigo póstumo, a sociedade não precisa mais de um Deus transcendente quando os indivíduos pagam pelos serviços prestados em nome dele e transformam os bens tangíveis em ideal divino.Atualmente, o que se considera sagrado é o consumo.
O crescimento das correntes evangélicas pentecostais no país tem sido compatível com o fato de queo sagrado está cada vez mais comercializado e dessacralizado. É o Brasil cada vez mais desencantado. Isso não significa que não seja espantoso, claro, o ritmo com que a Igreja Católica tem perdido adeptos. E a perda tem sido maior entre as mulheres e os jovens. Em tese, é possível estancar essa sangria. Em 2013, o papa vem ao Brasil para falar especialmente às mulheres e jovens. Será difícil, porém, agradar as mulheres mantendo o sexo feminino excluído da hierarquia eclesiástica. Será difícil atrair jovens proibindo o sexo antes do matrimônio. Será difícil ampliar o número de padres mantendo o celibato religioso -e será quase impossível manter a filiação das pessoas de bom senso enquanto a doutrina católica continuar rejeitando os métodos contraceptivos modernos e proibindo o uso da camisinha, tão importante para evitar doenças sexualmente transmissíveis.
Não será fácil também reverter a debandada do rebanho quando o Vaticano assume na Rio+20 posições anacrônicas, contra os direitos sexuais e reprodutivos. A Igreja Católica pode virar o jogo, mas terá de mudar o discurso e a prática.
JOSÉ EUSTÁQUIO DINIZ ALVES, 58, doutor em demografia, é professor da Escola Nacional de Ciências Estatísticas do IBGE

Poder nao, serviço - os desafios para uma igreja realista


CEBI

Catolicismo: a decadência do poder

Sexta-feira, 20 de julho de 2012 - 0h22min
O cristianismo nasceu pobre, de um Deus feito gente pobre, difundido por pescadores e outros homens e mulheres dos grupos marginais. Gente de pequenas comunidades, que tinham uma extraordinária novidade para quem quisesse.
Depois, tornou-se a religião do poder romano, como Igreja Católica, e essa metamorfose tem até hoje consequências impagáveis.
A Igreja Católica começou a perder poder religioso com a ruptura de Lutero e poder mundano com o iluminismo. As revoluções burguesas derrubaram os privilégios da nobreza e do clero.
No Brasil e América Latina, o catolicismo chegou como a religião dos conquistadores. As reduções indígenas no Brasil, a apropriação dos templos incas e astecas, o batismo forçado dos negros desembarcados dos navios negreiros, cavaram um fosso entre a religião oficial do clero e o cristianismo vivido pelas massas subalternas. Aqui também houve uma metamorfose, e os pobres recriaram para si um cristianismo, um catolicismo, conforme sua própria imagem e semelhança. A proclamação da República começou subtrair o poder do clero no Brasil. A liberdade religiosa só chegou com a Constituição de 1945 pelas mãos de um ateu, Jorge Amado.
Hoje, o triunfalismo religioso está com os evangélicos pentecostais. Fazem marchas poderosas e ali também é difícil discernir o que é evangelho do que é mercado. Entre eles já começa ter críticas para "voltar ao texto bíblico". Certos setores católicos achavam que, imitando de alguma forma os evangélicos pentecostais, conteriam a sangria nominal religiosa. O resultado já está posto.
As últimas pesquisas indicam que o catolicismo brasileiro, nominal, é da ordem de 64,6% da nossa população. Como na Europa, a tendência é se estabilizar por volta de 40%. Deve crescer o número dos indiferentes diante das igrejas. O fenômeno pentecostal também não terá longo fôlego quando grande parte da população superar sua consciência ingênua diante dos milagreiros da teologia da prosperidade. Quem sabe os evangélicos históricos voltem mesmo ao texto bíblico, a grande contribuição deles ao cristianismo.
O Brasil mais católico continua no Piauí, Ceará, Paraíba, nordeste em geral. O Brasil menos católico está em Rondônia e Rio de Janeiro, onde já é minoria, com cerca de 45% do povo do Estado permanecendo católico.
A perda constante de poder na história não demove certos setores da Igreja Católica que acham ainda que a Igreja é poder. Muitos agem ainda como se vivessem na Idade Média. É perda de tempo e de energia. Além do mais, falta-lhes senso de realidade.
Só resta um poder real aos cristãos, sejam eles de qualquer Igreja: do sal, do fermento, da luz. E vale lembrar a terrível advertência de Jesus: "se o sal perder o seu gosto não serve mais para nada, a não ser para ser lançado fora e pisado pelos homens (Mateus, 5,13)".
Roberto Malvezzi, Gogó Equipe CPP/CPT do São Francisco. Músico. Filósofo e Teólogo
Adital

domingo, 15 de julho de 2012

A trajetória libertadora de d. Tomás Balduino


Entrevista fabulosa de um grande homem, que eu tive o prazer de conhecer e dou graças a Deus

A trajetória libertadora de Dom Tomás

Histórico de lutas sociais no Brasil nas últimas décadas se confunde com a vida do fundador da CPT e do Cimi, Dom Tomás
28/06/2012
Eduardo Sales de Lima,
da Reportagem

Dom Tomás Balduíno completa, no dia 31 de dezembro, 90 anos de uma vida voltada aos pobres, aos “sem-nada”, como diz. “Sem-nada”, que na visão do Bispo, precisa ser compreendido como o “sujeito” de seu tempo, o agente transformador de sua realidade.
Influenciado desde a infância pela religiosidade de sua família, com a presença três tios padres diocesanos, o Bispo emérito de Goiás optou por ser frade pela Ordem do Dominicanos, demonstrando, desde a juventude, desapego a qualquer tipo de status social.
Testemunho ativo de um dos momentos mais obscuros da história brasileira, a ditadura civil-militar, Dom Tomás explica a proximidade entre os jovens dominicanos e Carlos Marighella e a pressão sofrida pela Igreja no período em que a ditadura tentava dizimar os guerrilheiros do Araguaia.
Sua trajetória se confunde com a própria história dos movimentos sociais e da luta política no Brasil. Expoente da Teologia da Libertação, enxerga tal proposta como um modo de analisar a própria “caminhada” de Deus em busca da libertação desde o êxodo até a ressurreição. Ao Brasil de Fato, ele conta um pouco da sua história.
Foto: Rodrigues Pozzebom/ABr

Brasil de Fato – Dom Hélder Câmara, entre outros religiosos, antes de aderir à Teologia da Libertação, pertencia à ala mais conservadora da Igreja. E no seu caso, como ocorreu essa aproximação?
Dom Tomás – Eu tive uma trajetória diferente. Eu fiz o seminário com os dominicanos, em Uberaba (MG) e lá comecei o noviciado. Vim para São Paulo (SP) e encontrei um grupo de dominicanos chegado da França, com essas ideias. Depois vieram aquelas pregações de Frei Chico, lá em Perdizes [bairro da zona oeste de São Paulo]. Dessa maneira, o início de meu caminho, desde a minha juventude, foi um caminho de abertura. Eu tive chance também de estudar em Saint Maximin (Escola Teológica Dominicana), na França, de 1946 até 1950. Com a presença de Jacques Maritain (filósofo francês católico), tanto os dominicanos quanto os jesuítas. Isso me ajudou muito. Antes de voltar para o Brasil, eu tinha o sonho de trabalhar na área indígena. Mas fui encaminhado inicialmente para a faculdade. Lecionei na faculdade de Filosofia de Uberaba (MG), e depois fui para Juiz de Fora (MG), já em 1951.

O senhor vem de uma família religiosa?
Sim. Do lado materno eu tinha dois tios padres e do lado paterno um. Isso influenciou. Eles eram diocesanos e eu optei, nem sei por que cargas d’água, em ser frade. Houve muita oposição por elementos da família, porque meus tios eram diocesanos, ligados à família.

Com quantos anos o senhor descobriu sua vocação?
Isso nasceu comigo, parece. Quando criança eu “celebrava” missas, para a alegria e diversão do pessoal. Eu celebrava a missa com uma pedra de açúcar [risos] e imitava direitinho a fala em latim daquele tempo. E assim foi. Marcadamente um caminho religioso. Nunca tive assim um sobressalto de mudança, do que chamam de conversão. Talvez tenha sido até um defeito da minha trajetória.

Quando ocorre o Concílio Vaticano II (1962-1965), o senhor estava com 40 anos. Participou de alguma forma dele?
Eu participei através de minha ligação com Frei Romeu Dale, que era perito do Concílio. Ele tinha muita amizade comigo, foi meu professor. Depois eu fui prelado e ele insistiu para que eu fosse à última sessão. Não deu certo de eu ir. Tive que me preparar para ir ao Araguaia (da Prelazia de Santíssima Conceição do Araguaia, hoje Diocese de Marabá [PA]). Mas a gente estava muito informado do que estava acontecendo no Concílio, porque entre uma sessão e outra, ele ligava para casa. Ele morou no Rio e eu também. A gente debatia muitos temas.

Por que ocorreu o Concílio justamente naquele momento histórico?
Aquilo foi uma intuição do Papa [João XXIII]. Era para ser um papa de transição e os cardeais chegaram a um acordo de consenso para dar tempo para refletir. Mas ele, para a surpresa de todos, convocou o Concílio. A convocação do Concílio foi nitidamente uma abertura de visão de mundo.

Há quem diga que teria sido uma resposta à Reforma Protestante, 500 anos antes. O que o senhor acha?
O Concílio não teve nenhuma forma de, vamos dizer, “cruzada”. Pelo contrário. Queria abrir espaço, uma janela para outros cristãos de outras denominações. Foi pelo ecumenismo e se tornou um marco.

A sua Ordem dos Dominicanos abarca figuras com trajetórias extremamente distintas que vão desde Frei Betto a Tomás de Torquemada (o temível inquisidor). Como entender os dominicanos?
Eu e vários outros que comungam essa intuição de Domingos de Gusmão, temos como admiração o salto dado por ele. Um homem que saiu da clausura dos mosteiros para as cidades, para os burgos, as universidades. E ele vai para as missões. Internamente, outra coisa admirável é o sistema democrático da ordem. Os dominicanos sempre fizeram muita questão desse processo. Na ordem, se reúnem os capítulos. Os capítulos alternam-se entre os provinciais e os capítulos de não-provinciais. Há uns que são mais governistas, ligados ao trabalho interno, enquanto outros estão ligados a um trabalho mais amplo. Isso é um equilíbrio. Tanto que a ordem nunca teve cisão. É verdade que houve províncias mais fechadas que outras. Eu morei na França. A minha província era mais fechada, da estrita observância. Mas nós, brasileiros, engatamos com a província de Paris, que era aberta nos debates com o ecumenismo, com o operariado.

Nesse sentido, como o senhor enxerga o apoio dos dominicanos a Carlos Marighella?
Não são os dominicanos. Eles pertenciam à classe estudantil que começou ali na Juventude Universitária Católica (JUC) e na Juventude Estudantil Católica (JEC). E, depois, com muita coerência e muita lógica, se abriu para o social e para o político. A Ação Popular (AP), por exemplo, é uma decisão política de luta por enfrentamento à ditadura, e os dominicanos eram praticamente membros. Mas não era só uma expressão deles próprios. Não era mérito nem do Betto e nem de seus companheiros, como Fernando Britto, Tito e outros. Mas era porque eles estavam encarnados naquela realidade estudantil.

Até 1964 o senhor estava em Conceição do Araguaia. Quando ocorre a Guerrilha, a partir de 1972, o senhor não está mais lá?
Eu não participei de todo o processo. Foi o meu sucessor, Dom Estevão [Cardoso de Avellar].

Mas o senhor presenciou algum fato ligado diretamente à Guerrilha do Araguaia?
Nada. Mas quando eu estava na região, eles [guerrilheiros] já estavam por lá, trabalhando, fazendo serviços de médicos, dentistas, se entrosando com o povo.

E depois, quando o senhor foi substituído, chegou a tomar conhecimento de fatos por meio de Dom Estevão ou outros religiosos acerca da guerrilha?
Aí sim. Porque houve tensão entre os militares e os missionários. Um deles trabalhava na área indígena dos índios Suruí, dentro do território da Guerrilha. Os índios foram utilizados pelos militares como guias na mata. E depois, para mostrar quem era quem, abusavam dos índios de uma forma assim anti-ética, imoral, tentando incorporar as aldeias indígenas nesse serviço sujo.

Quais eram os missionários ligados à guerrilha?
O Frei Gil [Gomes Leitão] sempre foi um missionário naquela área. Ele que fez o primeiro contato com esses índios. Os índios não foram deslocados. O missionário chegou e fez amizades com eles. Foram várias tentativas e excursões para tentar o contato. Isso porque, quando os índios avistavam pessoas diferentes, fugiam. Frei Gil conseguiu. Os militares iam atrás dele, mas ele era muito esperto, se disfarçava bem. Certa vez, pediram a identidade dele, mas os missionários, os religiosos mudam de nome. E o nome dele, de identidade, é Dulce Leitão [risos]. Os militares o paravam, viam a identidade, e o descartavam. “Nós estamos atrás de um tal de Gil”. E aí, ele escapava.

Em 1972, o senhor foi um dos fundadores do Conselho Indigenista Missionário (CIMI). Como foi esse processo?
Foi muito interessante. Os missionários já estavam muito tempo insatisfeitos com a estrutura das Prelazias, que estavam nas áreas indígenas, mas eram focadas em construções de igrejas, na expansão física. Havia uma busca de outro instrumento. Eles queriam uma prelazia de pessoas, como um território de pessoas. Eu fui consultado e respondi de uma maneira assim, jocosa. “Eu acho que esse prelado vai ficar isolado; e ele vai ser um prelado pelado” [risos]. Aí retiraram essa proposta. Porque prelazias são áreas pastorais confiadas como dioceses a uma congregação. Há a prelazia franciscana, a prelazia dominicana, dos padres jesuítas. Então criaram um instrumento sem mexer com essa estrutura e assim foi pensado no Conselho Indigenista, por meio de um encontro em Brasília.
Eu entrei puxado por D. Pedro Casaldáliga. Ele me disse que outros bispos estavam ali para resolver os problemas dos índios. E lá nasceu a criança, o Conselho Indigenista Missionário (Cimi). Um conselho para cuidar da problemática indígena. E foi muito interessante, porque nós estávamos no pós-Medéllin [Conferência ocorrida em 1968], que fez uma opção pelos pobres, não considerando o pobre como objeto de nossa ação caritativa, mas como sujeito de sua própria caminhada. O Cimi nasceu sob essa inspiração. Houve muita tensão interna na equipe encarregada do Conselho, mas evoluiu no sentido de dar ao índio essa possibilidade de se afirmar como sujeito e ser protagonista, ter sua autonomia, sua terra, sua cultura. Havia missionários que andavam pelas prelazias e traziam informações para o Conselho. E numa dessas reuniões, um dos membros do Conselho, que era o padre Tomás Lisboa, um jesuíta, sugeriu a criação a assembleia de chefes indígenas. Por meio de nossa facilidade de diálogo com as lideranças das tribos, sugerimos esse encontro. Reunir gente que vivia em hostilidade, os Xavantes com Carajás, e isso foi o “ovo de colombo”. As assembleias aconteceram, os índios tinham momentos só deles, sem presença de missionários, de jornalista, de sociólogo ou antropólogo. E saíram dali com a seguinte decisão: primeiro recuperar nossa cultura; segundo, recuperar as nossas terras; terceiro, autonomia. Eles mesmos decidiram isso. Foi tudo registrado pelos cadernos do Cimi. E foi a partir dali que os indígenas começaram a caminhar com suas próprias pernas. Em muitas aldeias, os jovens missionários que estavam em outras regiões passaram a conviver com os índios e isso continua até hoje. Os Pataxós passaram a se tornar um povo antenado a toda a América Latina e não fechado neles mesmos.

E o processo de fundação da Comissão Pastoral da Terra (CPT), em 1975? Que anos depois o senhor passou a ser presidente?
A CPT nasceu de um processo conflitivo. Os bispos estavam achando que os militares “estavam dando” em cima dos padres que acompanham os lavra lavradores. Porque na proposta do golpe de 1964 estava, como prioridade, enfrentar os camponeses. Eles [militares] acompanhavam todos aqueles conflitos que estavam acontecendo. E achavam que, através de alguns lavradores, muitos camponeses entrariam no comunismo internacional. Então foram em cima dos lavradores mas também dos padres e freiras que só estavam acompanhando eles, por meio de um trabalho religioso. Aí o bispo se sensibilizou. Eles foram presos, ameaçados. Então nos reunimos e nasceu a Comissão Pastoral da Terra com uma proposta samaritana, de socorrer aqueles perseguidos [no caso, os religiosos], e mesmo os caídos, que eram os trabalhadores rurais. De imediato, a Pastoral da Terra foi cuidar de padres, freiras, e dos próprios lavradores.

Muitos dizem que o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) é filho da CPT, que surge como uma versão laica da CPT.
O nascimento é sempre complexo. Naquele livro Brava Gente, o [João Pedro] Stédile mostra que o processo é sempre complexo. Agora, não há dúvidas que era gente de origem das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), e também da CPT. Muitas pessoas faziam parte do trabalho da CPT e estavam engajados. Nesse sentido, a maternidade ou paternidade se dá como elementos que saem de uma igreja mais comprometida ilustrada sobretudo pelas CEBs.

Talvez o senhor tenha sido uma das vozes mais críticas, pela esquerda, do governo Lula. Como o senhor avalia os oito anos desse governo?
É complexo porque tem a compreensão da figura carismática e que até hoje é muito querida por pessoas da base. Às vezes, as próprias vítimas do processo não entendem as minhas críticas a ele, que tem a sua trajetória emblemática, do sertão nordestino até a presidência. O que chamou atenção no seu governo foi o fascínio pelo desenvolvimento econômico. Eu participei daquela marcha (dos movimentos sociais do campo, em 2005), num momento muito esclarecedor. Foi uma caminhada dos grupos sociais até Brasília. O Lula acabou aparecendo e comentou: “Quem é apressado come cru”. Logo depois houve aquele Plano Nacional da Reforma Agrária (PNRA). Teve até a participação na elaboração de gente como o Plínio de Arruda Sampaio. Tanto que por causa da demora de Lula, ele nem foi ministro. O programa veio, reduziram pela metade seus objetivos e foi-se esvaziando.

E em relação ao governo Dilma?
Em abril, todos os movimentos sociais foram para cima do governo, pressionando por posicionamento em relação à reforma agrária, à condição dos assentamentos, dos acampamentos. Chegaram a ocupar o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) e várias outras instituições nessa linha de enfrentamento. Quer dizer, a Dilma pisou no freio da reforma agrária.

O que significa esse anel de tucum que o senhor usa?
Isso é o casamento com a causa indígena. Essa peça foi feita pelos índios Tapirapé e dá para ver como é bonito, ele brilha até. E a gente assumiu como uma ligação com a causa indígena, mas não só com essa causa, mas com toda a causa de mudança e de transformação com o povo em busca do Brasil que queremos.

Voltando à questão dos membros fundadores da Teologia da Libertação. Há alguns pensadores que estão indo, como o José Comblin (falecido em março de 2011). Além disso, Dom Pedro Casaldáliga está debilitado...
Mas ele está com a cabeça boa.

Claro. Mas qual perspectiva o senhor tem da Teologia da Libertação? E os novos pensadores?
Gustavo Gutierrez costumava dizer brincando: “Se a Teologia da Libertação morreu, eu não fui convidado para o enterro.”[risos]. Nós não acreditamos nisso. A Teologia da Libertação, para mim, é teologia. É a única teologia em uma situação de opressão.

Uma teologia, de fato, não morre?
Fica sempre. Teologia é um conhecimento de Deus, um mistério de Deus; da abertura de Deus aqui com os homens e as mulheres. Trata-se de uma teologia que vai analisar a caminhada de Deus e vai encontrar, o tempo todo a libertação. Desde o êxodo até a ressurreição é isso, é esse encontro. É a fundamentação teológica da linha da libertação. O fato de, por exemplo, [Karl] Marx ter ido por um caminho semelhante na análise sociológica não impede que haja Teologia da Libertação, até utilizando argumentos dele. Então, o pessoal se fechou achando que era outra coisa. Não é. Isso é muita estreiteza, inclusive no conhecimento de Deus.

Boa parte dos religiosos que levaram essa teologia adiante são estrangeiros. Europeus que vieram para a América Latina nos anos de 1960. Ou, como no seu caso ou de Leonardo Boff e Frei Betto, foram brasileiros que estudaram na Europa. O senhor acha que jovens seminaristas, estudando somente aqui no Brasil, caminharão nesse viés libertador?
Essa pergunta tem um quê de desvalorização da realidade acadêmica aqui no Brasil. O Boff estudou lá na Alemanha, num outro contexto, mas superou isso através dos mesmos instrumentos teológicos. Ele (Boff) padeceu. Hoje ele é dominicano. Foi o truque dele para se livrar do domínio do bispo diocesano, porque o padre diocesano é 100% do ensino religioso. E agora ele pode exercer a missão de teólogo dele de uma forma missionária. A gente não depende colonialisticamente do europeu. Foi um estímulo para ajudar no plano científico. Agora, nos conteúdos da América Latina, a meu ver, salvou o Concílio Vaticano II. Porque o Concílio foi uma abertura para o mundo. A verdadeira abertura evangélica para o mundo não é a abertura europeia, que é a abertura para o mundo dos ricos. A verdadeira abertura “conciliar”, evangélica, é a abertura dos pobres, onde existe o mundo subversivo. Medellín foi o salvador do Vaticano II, a meu ver, porque abriu, de fato, a Igreja para os “sem-nada”.

Nos últimos meses ocorreram essas manifestações contra a crise econômica, contra o capitalismo, contra os bancos. Nota-se essas mobilizações resgatam valores humanistas também. De que forma esse “espírito” da Teologia da Libertação dialoga com essas manifestações?
Houve um retrocesso no mundo. Uma tendência à direita é geral. O pessoal fala da Teoria do Pêndulo. Uma hora o pêndulo está na esquerda, outra hora ele está na direita. Então é surpreendente quando jovens estudantes, professores, da Europa e dos Estados Unidos fazem isso. Acho que é um campo para a Teologia da Libertação. Propício para uma reflexão com esse pessoal. Na medida do possível, porque ninguém quer ser mestre de ninguém, mas companheiro. E sobretudo a gente aprende. Ficamos surpresos. Por que aconteceu isso? Até a própria juventude alienada foi nessas manifestações.

Que mensagem o senhor nos deixa, talvez de motivação?
Acho importante isso. E está dentro da gente. E pode ser notada a partir, justamente, dos mais pobres entre os pobres. A gente está sabendo da situação dos pobres indígenas. Eles podem chorar na situação em que eles estão. Mas o que acontece? Alegria. Eles vivem a alegria e ninguém pode capturar isso de nós. Isso entre Kaiwowa, Xukuru, Pataxó. Todos vivendo o maior sofrimento, maior sufoco, a maior angústia de não ter perspectiva e então; esse pessoal vive de alegria pela esperança. Eu acho que essa lição, a partir deles, deve ser um recado do senhor Jesus para todos nós.