APRESENTAÇÃO

Textos e silêncios pretende ser um espaço reflexivo ecumênico, fundamentalmente voltado para a vida concreta das pessoas a partir de textos e livros, mas também do caminhar contemplativo e meditativo, da vivência amorosa e solidária dos que, de alguma forma, partilharam comigo suas vidas, dores, sofrimentos e esperanças. A eles - e a vocês - devo a minha vida, o olhar que desenvolvi de existência e a experiência cristã do encontro com o Cristo servidor que nos salva. A eles sou devedor, minha eterna gratidão.

sábado, 26 de janeiro de 2013

A Igreja na encruzilhada e o temor da irrelevância social. Entrevista especial com Luiz Roberto Benedetti


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A Igreja na encruzilhada e o temor da irrelevância social. Entrevista especial com Luiz Roberto Benedetti

A Igreja se encontra numa encruzilhada, num dilema: abrir-se ao mundo e dialogar com ele ou fechar-se sobre si mesma, constata o sociólogo.
Confira a entrevista.
“Maio de 1968 fez dos direitos humanos uma busca de satisfação de direitos individuais. O politicamente correto produziu um minimalismo ético, constituído de normas pontuais, provocadas por interesses tribais e corporativos. A realidade é que não se sabe como preencher o vazio. Nesse quadro, sumariamente esboçado como pensar o conservadorismo? E a Igreja?”. A indagação vem do padre e sociólogo Luiz Roberto Benedetti. Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, ele concorda que a Igreja Católica seja conservadora e que ela aposta no conservadorismo. “Mas o pensamento e praxis institucionais de caráter doutrinário, ao ignorar o contexto histórico, podem produzir frutos amargos, perdendo relevância social mesmo no patamar dos valores que apregoam como sendo constitutivos de seu estilo de pensamento de modos de vida”. Para Benedetti, na atual conjuntura eclesial, “parece em curso um processo de mediocrização crescente: imposição acrítica da doutrina, a falta de uma hermenêutica séria na pregação da Palavra, valorização do espetáculo e pompas rituais, as grandes concentrações e a decadência de uma educação teológica de caráter sapiencial e reflexivo ilustram o quadro”.
Luiz Roberto Benedetti (foto) possui graduação em Filosofia pelo Instituto Camiliano Pio XII, graduação em Filosofia pela Universidade de São Paulo, graduação em Teologia, mestrado em Sociologia pela Universidade de São Paulo e doutorado em Ciências Sociais pela mesma instituição. Foi assessor nacional da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB. Foi professor na Faculdade de Teologia e Ciências Religiosas da Pontifícia Universidade Católica de Campinas. É autor de, entre outros, Os santos nômades e o Deus Estabelecido (São Paulo: Paulinas, 1983) e Templo, praça, coração - A articulação do campo religioso católico (São Paulo: Humanitas / USP / FAPESP, 2000).
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Como o senhor analisa a posição da Igreja no contexto atual? Percebe que ela estaria enfrentando a modernidade com uma aposta no conservadorismo?
Luiz Benedetti - Tento ir na contramão e evitar definições prévias ou aderir a posições já assentadas. Assim, por exemplo, de um lado, se afirma que a secularização é um fato e, mais ainda, um dado irreversível e que o pluralismo e crescimento dos grupos religiosos é sua expressão visível. De outro lado, a posição contrária que vê um renascer religioso que coloca em xeque tudo o foi teorizado até agora sobre este termo. Se aceita a teoria, pode-se no máximo admitir que há uma pós-secularização ou dessecularização. Outro exemplo: o próprio termo relativismo é insuficiente para caracterizar o contexto atual. De um lado, há a crise do pensamento metafísico; de outro, a crise do marxismo colocou por terra a pretensão de conferir um desígnio à História, portadora, no dizer de Otavio Paz, de uma transcendência mítica. Busca-se no estilo de vida, fundado no consumo, um sentido para a vida. Mais do que relativismo, o que se experimenta é um grande vazio, que não se sabe como preencher.
Pretensões institucionais de fazê-lo estão mergulhadas em reivindicações que agudizam contradições no interior dos grupos religiosos, confrontados com a predominância de aspirações e desejos subjetivos (que se acredita serem direitos inalienáveis) sobre doutrinas e normas. Maio de 1968 fez dos direitos humanos uma busca de satisfação de direitos individuais. O politicamente correto produziu um minimalismo ético, constituído de normas pontuais, provocadas por interesses tribais e corporativos. A realidade é que não se sabe como preencher o vazio. Nesse quadro, sumariamente esboçado como pensar o conservadorismo? E a Igreja? Olhemos a Praça de São Pedro, no Angelus do domingo, 13 de janeiro: enquanto membros de um grupo feminista se despia durante a alocução papal em protesto contra o modo como a instituição eclesiástica trata as mulheres, uma multidão, de mais de 350 mil pessoas, participava de marcha contra o projeto do presidente da França, Hollande, de liberar o casamento gay e garantir o seu direito de adotar filhos. E no campo da teoria antropológica, Marc Augé, perguntando se na questão homossexual existe algo mais conservador do que a reivindicação do casamento.
IHU On-Line - Quais as chances de sucesso da opção conservadora diante da crise de credibilidade da Igreja atualmente? Que riscos se corre indo por esse caminho?
Luiz Benedetti - O conservadorismo funda-se na ideia de ordem e de integração de uma sociedade verticalizada e governada pelos “melhores”, por uma elite que se pretende modelo do pensamento e ação justos. Mas o problema não está em entendê-lo através de posições doutrinárias ou ideológicas pré-estabelecidas, mas sim de perscrutar traços que podem ajudar a desvendar se as atitudes são conservadoras ou não. E só no desenrolar dos fatos que o caráter transformador ou conservador se manifesta. Como exemplos, pode-se pensar no sacerdócio feminino ou na ordenação de homens casados, que podem acentuar ainda mais a clericalização da Igreja se não se vai às raízes da dominação clerical. Outro exemplo, fora do catolicismo: a Primavera Islâmica pode repetir o caso iraniano: O aitoláKhomeini, recebido como herói, libertador do domínio da dinastia de Reza Phalevi, aplaudido pelos comunistas, fez destes as primeiras vítimas de um regime religioso que, no caso, assumiu caráter totalitário. Mais, contrariando até mesmo o próprio Islamismo.
Mas, tanto num caso quanto no outro há, por parte das duas religiões citadas, apelo a uma tradição. Esta é, objetivamente, a concretização de uma identidade sociocultural que nem sempre dignifica a pessoa e favorece sua emancipação. A tradição forma, no dizer de Manheim, modos de vida; estes, por sua vez geram estilos de pensamento que levam os indivíduos a se relacionarem com a realidade dentro de um esquema que interessa a grupos situados em posição privilegiada dentro do status quo institucional. Nesse caso, no exemplo citado, é claro que a Igreja Católica é conservadora e aposta no conservadorismo. Mas, como lembrei acima, o pensamento e praxis institucionais de caráter doutrinário, ao ignorar o contexto histórico, podem produzir frutos amargos, perdendo relevância social mesmo no patamar dos valores que apregoam como sendo constitutivos de seu estilo de pensamento de modos de vida, para ficar mais uma vez nos termos de Manheim. As instituições são conservadoras, governadas pela lei de sua autoreprodução. Para isso fazem adaptações pontuais.
No caso da Igreja Católica ela lida com o conflito através de mecanismos do tipo heresia e canonização. Pode-se ver um exemplo concreto na retomada da onda de canonizações no pontificado de João Paulo II. João XXIII Paulo VIutilizaram pouco este mecanismo. Seu horizonte de visão e ação estava no mundo. O que a Igreja tinha a dizer estava mais em discernir os sinais dos tempos do que em propor modelos “prontos” de vida cristã. A própria reação a canonizações (Pio XII e os judeus, por exemplo) confirma a força simbólica desse mecanismo.
Conservadorismo: dados
O conservadorismo implica em um duplo movimento, de cima para baixo e vice-versa. Há uma espécie de retroalimentação. O peso maior ou menor do vértice ou da base depende de momentos e situações históricas definidas. Fala-se da Cúria Romana, como modelo de conservadorismo, mas nem ela é um todo monolítico, se considerarmos as pessoas que ocupam cargos. Entretanto, se levarmos em conta os mecanismos que a regem, sua dinâmica interna – a burocracia impessoal e a distância pastoral, a falta de contato direto com o povo de Deus – seu funcionamento se reduz ao papel frio de controladora da vida da Igreja. Às vezes tem-se a impressão que se inventam problemas para gerar controvérsias e, dessa forma, ter como mostrar trabalho. Assim, o campo da regulação dos ritos é um terreno fértil para a geração de discussões. Só que esse mecanismo funciona e bem na medida em que provoca um movimento de baixo para cima. Um exemplo muito banal: a ausência de inquietação com os destinos do mundo por parte de seminaristas e os novos padres. Seu horizonte de preocupação restringe-se ao funcionamento da vida interna da Igreja. Sem ter o mundo e a história como horizonte de vida e pensamento cai-se na mediocridade. E então vestes e horários ficam mais importantes que as alegrias e dores do povo de Deus.
Problema crucial está na escolha dos quadros intermediários da Igreja: são vitais para sua atuação na sociedade. As nomeações têm obedecido a critérios nos quais pesa mais a submissão que a capacidade de contribuir para dar novos rumos ao caminhar da Igreja. A obediência pode ser caracterizada como subserviência. Isso porque o conservadorismo gira em torno de três eixos: a obediência tornada subserviência que faz o indivíduo ficar a serviço de tarefas pré-estabelecidas no tempo e no espaço; o carreirismo, fruto do poder como privilégio e favor e não como serviço: e a burocracia, cuja impessoalidade se entende como racionalização e eficácia.
IHU On-Line - O que esperar de um cenário em que, ao mesmo tempo, se diluem as bases tradicionais de pertença religiosa, a liberdade religiosa, o pluralismo e a secularização e se abre espaço para projetos religiosos de viés conservador e fundamentalista?
Luiz Benedetti - Para mim, aqui está a raiz dos problemas que a Igreja enfrenta. Discute-se realmente no interior da Igreja essas questões? O viés conservador se radica muito mais na ausência de discussão séria e competente para fazê-lo do que em posições doutrinárias que, conservadoras ou não, alimentem o debate e dinamizem a recepção ativa da ortodoxia e alimentem uma praxis criativa. Valha repetir o exemplo: a religiosas norte-americanas incomodam o aparato burocrático porque são competentes no exercício de seu serviço cristão e na capacidade de dialogar com o mundo. E aí vem a intervenção disciplinar, de caráter punitivo, ao invés de se deixar interrogar por uma postura social e eclesialmente responsável. Isso sem falar no levantamento prévio da suspeita.
Na atual conjuntura eclesial parece em curso um processo de mediocrização crescente: imposição acrítica da doutrina, a falta de uma hermenêutica séria na pregação da Palavra, valorização do espetáculo e pompas rituais, as grandes concentrações e a decadência de uma educação teológica de caráter sapiencial e reflexivo ilustram o quadro.
IHU On-Line - Quais os maiores desafios que a Igreja precisa enfrentar na contemporaneidade? Como ela tem feito isso, na sua opinião?
Luiz Benedetti - Diria, simplificando e muito, que a Igreja se encontra numa encruzilhada, num dilema: abrir-se ao mundo e dialogar com ele ou fechar-se sobre si mesma. No primeiro caso, precisa qualificar-se e sua política de silenciamento dos teólogos, de intervenção em grupos socialmente atuantes e gozando de reconhecimento social explícito (caso das religiosas americanas) mostra que não foi este o caminho escolhido. No segundo caso, fechar-se sobre si mesma, leva a refugiar-se em modelos institucionais de pensamento, ação e formação de quadros que deram certo numa determinada época histórica. Seminário, paróquia, o uso do latim como língua universal constituem aspectos sintomáticos de uma totalidade fechada e imune às interrogações da realidade. Sente-se na Igreja um centralismo crescente preocupado com sua autoreprodução. Um exemplo está na preocupação em fortalecer o status institucional católico da Caritas, fortalecendo sua identidade confessional até mesmo caminhando numa direção proselitista em um campo que sempre foi muito além do assistencialismo. Deu força a ações encarnadas e encarnatórias acima de horizontes ideológicos. Estes não podem ocupar o lugar que cabe à “Graça”. Mostrar-se católico, neste caso, pode aparecer como uma logomarca da ação caritativa (que não conhece horizontes confessionais-ideológicos). No campo da cultura, o “imbróglio” Universidade Católica do Peru caminha na mesma direção.
IHU On-Line - Como o senhor percebe a postura de Bento XVI de robustecer a Igreja Católica frente aos desafios impostos pelo avanço do pluralismo religioso e cultural?
Luiz Benedetti - Robustecer a Igreja num mundo de pluralismo religioso e cultural significa, antes de mais nada, preparar quadros qualificados para o diálogo adulto e responsável. E isso só é possível em clima de liberdade. Quando esta desaparece, ou pior, cede lugar ao medo, instaura-se a mediocridade, cria-se um saber de manual, de repetição de fórmulas. Pior: alimenta-se a imagem da Igreja como praticante de uma espécie de polícia do pensamento tão a gosto da imprensa que explora à saciedade esta faceta. Aliás, nem sempre de maneira justa. Só que não se pode esquecer: livros proibidos provocam corrida às livrarias e seus autores adquirem respeito e guarida em centros de produção de pensamento, que prezam acima de tudo a competência e honestidade intelectuais. Por outro lado, não se pode esquecer que esse quadro de mediocrização se generaliza cada vez mais no ambiente acadêmico como um todo.
IHU On-Line - Como o campo religioso católico brasileiro se articula com o cenário internacional da Igreja? Qual a especificidade do catolicismo brasileiro?
Luiz Benedetti - O último censo diz tudo. A sensação, pessoal, e, por que não, o temor, é o de uma Igreja que caminha para a irrelevância social. Mais adaptada ao mundo (que combate) do que parece. Fixemo-nos num dado: a prática cultual. Um padre mostrou-me a assembleia reunida para a Eucaristia e comentou: somos cada vez mais a Igreja das cabeças brancas. Referia-se a faixa etária dos participantes. O catolicismo brasileiro, na realidade, são catolicismos. Se tomarmos o catolicismo “oficial” (na falta de outro termo) a esperança reside no profetismo, num catolicismo de resistência, o mesmo que assumiu o Vaticano II, combateu a ditadura e luta pelo direito dos pobres. Nas comunidades, pouco visíveis, mas capazes de uma solidariedade pequena, despojada, mas que faz frente ao individualismo contemporâneo. Quanto ao catolicismo popular: o pentecostalismo se alimenta dele. Os cientistas sociais se perguntam: não será ele, em suas formas novas, um catolicismo rural urbanizado?
IHU On-Line - Fazendo uma breve retrospectiva da diversidade e da unidade da Igreja Católica e de seus dilemas entre o início da década de 1960 e a década de 1990, como o senhor percebe a Igreja hoje, em comparação a este período? Qual o espaço que ocupam hoje, para os fiéis católicos, as três vertentes básicas da instituição: Templo, Praça e Coração?
Luiz Benedetti - Nos anos 1960 a unidade se dava em termos de uma pastoral planejada, de atuação colegiada dos bispos. Havia uma “vanguarda” episcopal, nomeada por D. Armando Lombardi, que buscou entre os padres que eram assistentes da Ação Católica, bispos capazes de dar um novo perfil ao episcopado, sensíveis à dinâmica histórica, aos problemas da realidade social em transformação, capazes, no dizer de um acadêmico, de aprender com os leigos e escapar ao mundo da formação seminarística (no seminário não se podia ler Jacques Maritain). A consagração dessa realidade pelo Concílio Vaticano II, dando à colegialidade episcopal um papel “sacramental” foi radicalmente alterada com a “ligação” direta bispo-papa, a colegialidade reduzida a um agregado “afetivo”, a obediência livre e responsável substituída pela submissão em todos os níveis da vida religiosa católica, os movimentos de caráter emocional-intimista, doutrinariamente fundamentalistas alteraram radicalmente o quadro de “utopias” em ação dos anos 1960. Mas é preciso acrescentar. Nos anos 1960, as Igrejas oriundas da Reforma viviam a mesma efervescência. E se alimentavam umas às outras. As produções do Conselho Mundial de Igrejas eram lidas por nós. Hoje o mesmo processo ocorre ao inverso:
Templo: poucos jovens, rituais que seduzem menos pelo mistério e pela Palavra que pela pompa vazia e mentalidade rubricista.
Praça: os leigos estão no mundo, lugar de exercício de sua vocação batismal? Os ministérios leigos não representam uma saída para o verdadeiro problema que é a busca de novas formas de exercício do sacerdócio ministerial? Por isso mesmo, no momento não estão na praça. São clericalizados.
Coração: não se vê um horizonte favorável aos movimentos de caráter emocional. Há uma sensação, apenas uma sensação, de esgotamento. Mesmo porque são incapazes de agir sobre a sociedade em que surgiram e transformar a Igreja que lhes deu força. E mais: o forte componente emocional tende a se esgotar rapidamente e não deixar nada no seu lugar.
IHU On-Line - Qual o sentido do fundamentalismo religioso contemporâneo? Como ele se relaciona (e talvez se justifica) com outros fenômenos de nosso tempo?
Luiz Benedetti - Há que se escapar de uma visão que o vincula estreitamente às suas origens, fundadas na reação ao evangelismo liberal, à recusa de uma hermenêutica “moderna” na compreensão da Palavra de Deus. Ele é bem mais que isso. É uma atitude de vida, um modo de ser no mundo. Nesse sentido ele se apresenta como adesão irrestrita a um Grande Texto, assumido literalmente. Pode ser a Bíblia, o Alcorão, a própria Constituição de um país (um fundamentalismo tipicamente americano, no dizer de Agnes Heller). Apresenta-se como um modo de fazer frente a uma desordem e fragmentação internas, provocadas pela subjetivação intimista que faz do gosto pessoal o critério último da consciência moral. Mas é preciso perguntar: será que a sociedade recusa os parâmetros que a Igreja prega? Ela precisa deles e os solicita. O que ela recusa é a imposição pela violência – simbólica ou física. Mesmo porque esses parâmetros são funcionais. Eles delimitam o campo da ação “legítima” e, nesse sentido, “situam” num mapa significativo indivíduos e grupos. Os indivíduos sabem o que é certo ou errado. E isso traz segurança. Impede que sejamos, na expressão de Berger, “homeless mind” (um mundo sem lar). O que, em absoluto, não quer dizer que se norteiem pelos parâmetros propostos. Uma demonstração de que a sociedade não recusa verdades está na aceitação e difusão ampla da literatura de autoajuda, um tipo de guia que traz pronto um mundo no qual não é preciso pensar, refletir, escolher, decidir. A autoajuda dispensa o discernimento e a escolha. Responde ao homem moderno cuja angústia é ter que escolher.


Belo Monte é um absurdo e termeletricas são desnecessárias

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“Belo Monte é um absurdo e termelétricas são desnecessárias”

O setor de energia ganhou as primeiras páginas dos jornais no início de 2013 com o baixo nível dos reservatórios e a possibilidade de manter as termelétricas ligadas ao longo de todo o ano para compensar a falta de chuvas. Célio Bermann, professor do Instituto de Eletrotécnica e Energia da USP, é um crítico severo dessa solução. Um dos mais respeitados especialistas na área energética do país, trabalhou como assessor da então Ministra Dilma Rousseff no Ministério de Minas e Energia, entre 2003 e 2004. “Saí quando verifiquei que o Ministério de Minas e Energia estava fazendo o contrário do que eu pensava que seria possível”, diz ele. Severo crítico da hidrelétrica de Belo Monte, fez parte do painel de especialistas que concluíram que o projeto da usina não deveria ter seguimento.

A entrevista é de Daniele Bragança, publicada por O Eco e reproduzida por Amazônia.org.br, 23-01-2013.
Eis a entrevista.

O Ministério de Minas e Energia estuda usar as termelétricas de forma permanente, para poupar os reservatórios. O que o senhor acha disso?
Utilizar termelétricas para complementar o sistema hidrelétrico é uma solução equivocada. Em primeiro lugar, estamos falando de um sistema elétrico que prioriza a geração de energia a partir da água, o que o torna dependente do regime hidrológico. É preciso com urgência diversificar a matriz de eletricidade do Brasil, utilizando fontes que, ao mesmo tempo, possam complementar o regime da falta de água e que sejam viáveis do ponto de vista econômico e ambiental.
Por quê?

Primeiro, porque a termoeletricidade pode custar 4 vezes mais do que a hidroeletricidade. Além disso, utiliza três fontes fósseis derivados de petróleo: óleo combustível, carvão mineral e gás natural. O principal problema na utilização das fontes fósseis, ao meu entender, não são as emissões de gases de efeito estufa. No caso brasileiro, o problema maior das termoelétricas é serem emissoras de hidrocarbonetos, de dióxido de nitrogênio, de dióxido de enxofre, de material particulado e de fumaça.

Quais são as consequências?

O impacto ambiental dessas fontes é sobre a saúde pública. A vizinhança dessas usinas fica suscetível a doenças crônicas causadas por esse coquetel de poluição.
Há termelétricas que utilizam água na sua refrigeração. Isso causa impactos negativos?

Em geral, essas usinas utilizam água dos rios próximos. Existem regiões no Brasil em que o comprometimento hídrico impede a construção de termelétricas. No estado de São Paulo, no rio Piracicaba, por exemplo, não foi possível construir usinas a gás natural porque elas demandavam um volume de água além das possibilidades da bacia deste rio.

Qual é o custo das termelétricas?

A energia das termelétricas pode custar até 4 vezes mais do que a hidroeletricidade. Ao mesmo tempo, com a Medida Provisória 579, o governo quer reduzir a tarifa de energia usando recursos do Tesouro Nacional. É um absurdo, pois esta medida afeta indiretamente o bolso dos consumidores. Somos nós que vamos pagar por essa redução da tarifa. É uma forma fictícia de fazer algo desejável: reduzir a tarifa. Temos uma das tarifas de energia elétrica mais cara do mundo, algo absurdo porque nossa matriz com ênfase em hidrelétricas produz energia que deveria ser barata.

E quais seriam essas alternativas?

São três: a conservação da energia, o uso da biomassa e da energia eólica. A primeira alternativa é pensar na conservação e no uso eficiente da energia. É preciso uma ampla campanha nas mídias para ensinar à população a reduzir o desperdício. O governo está fazendo o contrário, quando diz que não há risco de racionamento.

Quando o governo prefere a termoeletricidade como base, está dizendo: vamos usar a termoeletricidade de forma que não se tenha riscos durante o período em que a hidrologia é desfavorável, que é o período entre junho e outubro. Essa solução, como já pontuei antes, é completamente inadequada.

A campanha por redução do consumo de energia deve abranger também grandes consumidores industriais. Estou falando de 6 setores: cimento, siderurgia, alumínio, química, ferro-liga e papel/celulose. Em conjunto, eles respondem pelo consumo de 30% da energia no Brasil. Não estou falando em fechar essas fábricas, mas que um esforço desses setores na redução da sua escala de produção aumentaria a disponibilidade de energia para a economia e para a população. É uma questão de interesse público.

E a segunda alternativa?

A segunda alternativa é a utilização do potencial do setor sucroalcooleiro como fonte de complementação de energia. O Instituto de Eletrotécnica e Energia da USP recentemente constatou que, a partir do bagaço da cana de açúcar, resíduo da produção sucroalcooleira, pode-se produzir 10 mil megawatts excedentes, o que equivale a mais de 2 vezes a energia média produzida por Belo Monte. Essa energia pode chegar ao sistema elétrico em 3 ou 4 meses e a custo baixo.

Hoje, o bagaço é utilizado para complementar a própria necessidade de eletricidade das usinas. Mas elas também poderiam comercializar o excedente que é dessa ordem que eu falei, de 10 mil megawatts. Elas já comercializam 1.230 megawatts de energia elétrica excedente.

Por que essa energia não está disponível?

Uma resolução da Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica) determina que cabe à usina o investimento para construir as linhas de transmissão de energia que levem esse excedente da usina até uma subestação ou uma rede de distribuição de energia elétrica. Nosso levantamento, feito para algumas regiões, mostra que a distância entre as usinas e a rede varia de 10 a 30 km, percurso relativamente curto.

E o que poderia ser feito para viabilizar estas pequenas linhas?

BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento) poderia financiar a construção dessas linhas. Com crédito, esse excedente poderia estar disponível já na próxima safra, em abril de 2013. Com investimento na troca de equipamentos de cogeração – caldeiras de maior pressão – esses 10 mil megawatts potenciais da biomassa podem dobrar para 20 mil megawatts. De novo, em nome do interesse público, o BNDES poderia ser o financiador.

Infelizmente, o BNDES está usando 22,5 bilhões de reais para financiar a construção da usina hidrelétrica de Belo Monte. Quando ficar pronta, em 2019, ela acrescentará apenas 4.400 megawatts médios ao sistema elétrico. Veja o absurdo, a política do governo prioriza megaobras de hidrelétricas, quando existem soluções de energia complementar às hidros, que funcionam justamente na época das secas. A safra da cana de açúcar ocorre no período de menos chuvas, que vai de maio até novembro.

Belo Monte deveria ser descartado, então?

Belo Monte deveria ser descartada. O custo é enorme: 30 bilhões de reais para uma capacidade instalada de 11.233 megawatts. Essa capacidade estará disponível durante 3 ou 4 meses por ano, no período das chuvas. No mês de outubro, por causa do regime hidrológico, a capacidade de geração ficará reduzida a 1mil megawatts, ou seja, 10 % da capacidade instalada. A média ao longo do ano é de 4400 megawatts. A contribuição do rio Xingu e da Usina de Belo Monte é uma fração do que está sendo alegado para justificar a construção da usina. Eu afirmo, Belo Monteatende ao interesse das empreiteiras e empresas ligadas à sua construção, e não à população e a economia brasileira.

E a terceira alternativa?

A terceira alternativa é a energia eólica. No nordeste, o regime de ventos é maior justamente na época da estiagem. Os reservatórios do rio São Francisco podem acumular água durante o período mais crítico, enquanto a energia eólica abasteceria a região nordeste. Ouve-se a alegação de que a biomassa, a eólica, são fontes intermitentes. Ora, a hidroeletricidade também é intermitente, pois depende do regime hidrológico.

E quanto a eficiência, qual é o percentual de perda nas linhas de transmissão?

Conforme dados oficiais, o sistema de transmissão e distribuição nacional tem uma perda técnica (excluindo os gatos) da ordem de 15,4%. É impossível eliminar todas as perdas, mas cortar 5 pontos percentuais é tecnologicamente viável e traz grandes benefícios econômicos. Basta investir na manutenção do sistema: isolar melhor os fios de transmissão e trocar transformadores que já esgotaram sua vida útil. O número crescente de apagões é uma evidência de má manutenção. Por exemplo, parafusos velhos levam à queda de torres de transmissão.

Dessa forma, a perda poderia ser reduzida para cerca de 10% e acrescentariam ao sistema elétrico o equivalente a uma usina hidrelétrica de 6.100 megawatts – 150% mais da média de Belo Monte – de acordo com cálculo recente que fiz com estudantes da Pós-Graduação em Energia do IEE. Isso poderia ser alcançado a um terço do custo de produzir um novo megawatt.

A Aneel é leniente em relação às perdas. É fundamental que ela defina, em nome do interesse público, metas de redução de perdas técnicas nas empresas de distribuição e concessionárias de distribuição de energia. O alcance dessas metas deveria ser associado à redução tarifária.

É caro construir novas linhas de transmissão?

Sim, principalmente para levar energia distante dos centros de consumo, como é o caso dos projetos de hidrelétricas que estão sendo construídas na Amazônia.

E a energia nuclear? O Brasil deve pensar em investir nesta alternativa de energia?

A energia nuclear é uma fonte cara, desnecessária e com um risco de ocorrência de acidentes severos. Além das usinas de Angra 1 2, estamos construindo Angra 3. Todas elas numa região que é imprópria para a implantação de usinas nucleares. Angra dos Reis é uma região suscetível a grandes chuvas no verão. Não é impensável a possibilidade que uma chuva mais severa derrube as linhas que transmitem energia elétrica do sistema até as usinas.

O resultado da interrupção de fornecimento de energia elétrica pode fazer as bombas de refrigeração de água dos reatores pararem, provocando o superaquecimento e a explosão do reator, que foi o que aconteceu, em fevereiro de 2011, nos 4 reatores de Fukushima, no Japão. Com um agravante: a única via de escoamento da população é a Rio-Santos, absolutamente incapaz de evacuar toda a população local. A empresa Eletronuclear considera, hoje, uma população da ordem de 200 mil habitantes. Essa população dobra na época das férias, que coincide com a época das chuvas.


Homilia, com pequenas modificações, feita na celebração do batismo de nosso Senhor Jesus, no segundo domingo depois da epifania na Paroquia Santa Cruz, em São Paulo


Isaias 61, 1-5   1Corintios 12, 1-11  João 2, 1-11
Homilia, com pequenas modificações, feita na celebração do batismo de nosso Senhor Jesus, no segundo domingo depois da epifania na Paroquia Santa Cruz, em São Paulo
Celebramos hoje uma festa solene, a festa do batismo de Nosso Senhor, o Cristo Jesus.
Os textos bíblicos de hoje falam – ou deveriam falar – de uma forma especial a cada homem ou mulher na face da terra.
O primeiro texto fala de um servo de Deus – Servo! Que promoverá o direito, que será colocado como aliança de um povo com Deus e luz para as nações. E mais> “para abrir os olhos aos cegos, para tirar os presos da cadeia e do cárcere ao que vivem no escuro. Muitas vezes hoje vejo alocado nos carros e discursos a frase “Deus é fiel”!” Óbvio que é uma verdade, mas o centro de nossas vidas deve ser pautado por nós servirmos a Deus, a seu projeto, às suas ordens, à seu caminho, expressos na figura, presença, vida, palavras e atitudes de Jesus. Jesus é o grande e obediente Servo e assim nós, humildes e fracos, também devemos ser.
Nossa igreja, a anglicana, nesse aspecto, é muito sábia. É ponto e local de encontro, espaço não de julgamento, mas de inclusão e amor, não de divisão, mas de diálogo amoroso, não de discursos fáceis, mas de posturas inovadoras e corajosas, que testemunham Sua presença entre nós. Ainda que alguns insistam em estar em luta por seus interesses e espaços eclesiais, em detrimento da coletividade, a estrutura e as posturas coletivas estão a testemunhar o acolhimento dos gays, negros, mulheres, japoneses, imigrantes.
Em Atos Pedro reafirma: Deus não faz diferença entre as pessoas, mas aceita quem o teme e pratica a justiça. E revela que no batismo Deus ungiu a Jesus Cristo com o Espírito Santo e com poder. Com poder, mas preste atenção, pois não se trata de um poder qualquer ou para fazer qualquer coisa ou para ter conquistas, vitórias ou compras, mas para praticar o bem e curar os que estavam dominados pelo diabo.
No Evangelho o povo estava esperando o Messias, o Salvador. Ainda hoje quantos estão a perambular doloridos, esmagados, deprimidos, desolados ou escravos de um prazer doloroso ou fulgaz, preso no instantâneo a consumir e consumir-se, a transformar-se ele também em mercadoria a venda, preso à atenção estética e a superficialidades.
Jesus foi batizado. O batismo de João era um batismo de conversão e perdão dos pecados. O batismo de Cristo, entretanto, é um batismo no Espírito. Um batismo em que o Espírito desceu sobre Ele na forma corpórea – bem concreta e visível. Deus se fez corpo, Deus se fez história, temos como saber como Deus quer que o sigamos e vivamos: temos Jesus, o Cristo, o Ungido, o Verbo que se fez carne, o Emanuel – Deus conosco.
O batismo, entretanto, é mais, muito mais, do que um ritual, implica assumir uma nova visão do mundo, um novo olhar, uma nova forma de vida em que assumimos e experimentamos o mistério e o ministério de Jesus, que dialoga e se relaciona com o sofrimento humano. A preocupação central em Jesus era aliviar o sofrimento humano. E isto se deve fazer presente na vida da comunidade, com encontro concreto e real de pessoas amantes e amadas que vivem unidas, partilhando o que tinham “segundo a necessidade de cada um”, na escuta da Palavra, na oração e na eucaristia. Se aceitamos hoje o batismo de crianças é porque entendemos que seu acolhimento na e pela comunidade cristã é o mergulho no Espírito e na experiência, na educação, no modo de agir de Cristo, testemunhado pela comunidade, em seguimento aos apóstolos e aos mártires Dele.
O batismo é a acolhida de uma experiência DE Deus, experiência do Amor.
Deixamos um detalhe do texto – pequeno mas, a nosso ver, importante a ser agora explicitado. Jesus foi batizado e ficou a rezar. Só então o céu se abriu e o Espírito desceu. Oração. Ponto de encontro, ponto de entrega, ponto de escuta, ponto central da vida cristã! Central, decisivo. É aí em que tudo se decide, onde nos alimentamos de Sua Palavra, a ser lida e meditada, onde fugimos do corre corre e podemos desenvolver a contemplação que nos permite ver a Deus em nossas vidas, ver a Deus no Rosto dos sofridos, ver a Deus fora das obviedades que nos permite enxerga-lo nos pobres, desvalidos, doentes, coxos, presos, nos fracos, nos frágeis. Porque Deus não nos ama porque somos bons, fortes, belos, mas a fragilidade dos homens e dentre estes os mais frágeis – podemos nos sentir em casa com todos os nossos inúmeros pecados em Sua presença amorosa e assim nos curar e transformar.
Experiência de Deus, não de dogmas, doutrinas, leis e códigos de conduta religiosos que em nada nos libertam. Experiência de Deus. De liberdade, de amor que nos permite chorar juntos, nos alegrar juntos, cantar juntos – em espírito e verdade, com todo o nosso ser!
Uma Igreja e uma experiência – pessoal, comunitária e social – evangélica, carregada de Boas Novas, que seja celebração do batismo – experiência com o Espírito Santo de Deus e um viver e reviver de nosso grande amor o encontro com Jesus!
Temos sido em nossas vidas testemunho de alegria e da força do encontro com o Senhor?
Será que temos refletido e vivido a experiência com Deus que nos salva, dá sentido e direção, molda nosso coração com Sua face e gera a “seiva” que alimenta nosso viver?
Que Deus nos abençoe, nos guie e nos guarde para que possamos re-conhecer Sua presença em nossa vida e sermos fiéis, eternamente, aos desdobramentos deste encontro.
Minas queridas, meus queridos, a Eucaristia é sempre missão. Jesus que vive entre nós e em nós na Eucaristia nos dá força para sair para o mundo e levar boas novas aos pobres, visão aos cegos de todo tipo e naipe, liberdade aos presos e proclamar e testemunhar Que Deus mostrou sua generosidade a todas as pessoas. Não vamos sozinhos, vamos com nossos irmãos e irmãs que também sabem que Jesus vive neles.
Ide e testemunhai a experiência com Deus entre os homens, sede a presença do Santo Espírito a soprar e a agraciar a vida de todos.
Amém.

sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

Pedido de silêncio do Vaticano...


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Pedido de silêncio. Artigo de Tony Flannery, padre redentorista

Três dias depois do meu 66º aniversário, eu me encontro proibido de ministrar como padre, com uma ameaça de excomunhão de Roma e de dispensa da minha congregação pairando sobre mim.

O depoimento é do redentorista Tony Flannery, renomado sacerdote irlandês conhecido pelas suas opiniões sobre a ordenação feminina e a homossexualidade. Ele foi investigado pelo Vaticano e silenciado, em abril de 2012, pelaCongregação para a Doutrina da Fé

O artigo foi publicado no sítio do jornal The Irish Times, 21-01-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

Três dias depois do meu 66º aniversário, eu me encontro proibido de ministrar como padre, com uma ameaça de excomunhão e de dispensa da minha congregação pairando sobre mim. Como eu cheguei a essa situação?

Eu entrei na Congregação Redentorista em 1964 e fui ordenado 10 anos depois. Aquela era a época de uma grande abertura na Igreja Católica. Nós acreditávamos na liberdade de pensamento e de consciência, e que o ensino da Igreja não era algo a ser imposto rigidamente sobre as pessoas a que servíamos – elas eram inteligentes e instruídas, e podiam assumir a responsabilidade pelas suas vidas.

Como pregadores, tínhamos que tentar apresentar a mensagem de Cristo de uma forma e em uma linguagem que falavam com a realidade da vida das pessoas. Isso exigia uma disposição a ouvir as pessoas, compreendendo as suas esperanças e alegrias, as suas lutas e medos.

Ajudar as pessoas a lidar com o ensino sobre a contracepção durante os anos 1970 foi um grande campo de treinamento. Apenas repetir a linha oficial da Humanae Vitae não ajudava. Durante esses anos, os padres e as pessoas aprendiam igualmente muito sobre como formar as suas consciências e tomar decisões maduras sobre todas as áreas das suas vidas. Como padres, aprendemos mais com as pessoas do que elas conosco.

Como o passar dos anos, todos pudemos ver que a autoridade magisterial dentro da Igreja estava revertendo para o estilo mais autoritário do ministério praticado no passado. Como a autoridade se tornou mais uma vez centralizada noVaticano, os padres da minha geração foram pressionados a ser mais explícitos e decisivos ao apresentar o ensino da Igreja: a ortodoxia era agora o imperativo, e permitir que as pessoas pensassem por si mesmas era visto como perigoso. Não havia espaço para áreas cinzentas.

Relatórios para Roma

Demo-nos conta de que havia pessoas ao redor do país que relatavam às autoridades eclesiásticas qualquer leve desvio da posição oficial por parte de um padre, por exemplo permitir que uma mulher lesse o Evangelho na missa. Em todo o mundo, os padres estavam sendo penalizados, silenciados e até mesmo demitidos, porque eles não estariam seguindo a linha.

No outono de 2010, eu fazia parte de um pequeno grupo que montou a Associação dos Padres Católicos (ACP, na sigla em inglês). Essa associação era única por ser um órgão independente do clero, um novo fenômeno na Igreja, e com o qual as autoridades, na Irlanda e no Vaticano, se sentiam desconfortáveis e não sabiam como lidar. O crescimento do movimento serviu para me catapultar a uma posição mais proeminente, que atraiu sobre mim a atenção da Congregação para a Doutrina da Fé

Eu estava escrevendo para várias revistas religiosas há mais de 20 anos sem nenhum problema. Mas, de repente, em fevereiro passado, fui informado pelos meus superiores redentoristas que eu estava com sérios problemas por causa de algumas coisas que eu havia escrito. Fui convocado a Roma, não ao Vaticano, que até hoje não se comunicou comigo diretamente, mas apenas com o superior dos redentoristas.

Esse foi o início daquele que hoje é quase um ano de tensão, estresse e difícil tomada de decisão na minha vida. Inicialmente, a minha política foi ver se algum acordo era possível, e no início do verão essa parecia ser uma possibilidade real.

Mas eu gradualmente tomei consciência de que a Congregação para a Doutrina da Fé continuamente levantava barreiras, até que eu cheguei ao ponto em que eu não podia mais negociar. Fui confrontado com uma escolha. Ou eu assinava uma declaração, para publicação, afirmando que eu aceitava os ensinamentos que eu não podia aceitar, ou eu ficaria permanentemente banido do ministério sacerdotal, e talvez enfrentaria sanções mais graves. É importante deixar claro que essas questões não eram questões de ensino fundamental, mas sim de governo eclesial.

Então, agora, a esta hora da minha vida, ou eu coloco o meu nome em um documento que seria uma mentira e impugnaria a minha integridade e a minha consciência, ou eu enfrento a realidade de nunca mais ministrar como padre. Eu sempre acreditei na Igreja como a comunidade de fiéis e como um elemento essencial para a promoção e o fomento da fé. Eu gostei dos meus anos de pregação, o principal trabalho dos Redentoristas, e nunca tive qualquer dúvida de que valia pena proclamar a mensagem de Cristo.

Mas abrir mão da liberdade de pensamento, da liberdade de expressão e mais especialmente da liberdade de consciência é um preço alto demais para eu pagar para que me seja permitido ministrar na Igreja de hoje.

Identidade católica

Há pessoas que dirão que eu deveria abandonar a Igreja Católica e me unir a outra Igreja cristã – uma mais adequada ao meu posicionamento. Ser católico é central para a minha identidade pessoal. Eu tenho tentado pregar o evangelho. Independentemente das sanções que o Vaticano impuser sobre mim, eu vou continuar, de qualquer forma que eu puder, para tentar realizar uma reforma na Igreja e para torná-la novamente um lugar onde todos os que queiram seguir a Cristo serão bem-vindos. Ele fez amizade com os excluídos da sociedade, e eu vou fazer o que puder por minha própria conta, na pequenez, para me opor à tendência vaticana atual de criar uma Igreja de condenação, em vez de uma Igreja de compaixão.

Eu acredito que o verdadeiro objetivo da Congregação para a Doutrina da Fé é suprimir a Associação dos Padres Católicos – foram feitas tentativas para cortar as asas da associação austríaca. Eu espero e rezo para que isso não ocorra.

Enquanto eu estou lidando com essas questões na minha vida, eu acredito que é apropriado para mim permanecer temporariamente afastado da minha posição de liderança da associação. No entanto, continuarei sendo um membro ativo e estarei disponível para ajudar, de todas as formas possíveis, o trabalho da Associação dos Padres Católicos, que é maior do que qualquer pessoa.

Finalmente, poder-se-ia perguntar por que eu estou vindo a público agora, tendo permanecido em silêncio durante um ano. Eu preciso retomar a minha voz.

Fiel aos pobres


Irmão Cechin: aos 85 anos, o profeta dos catadores ainda está disposto a lutar

Terça-feira, 15 de janeiro de 2013 - 17h01min
por Instituto Humanitas Unisinos (IHU)
Este ano ele completa 86 anos de vida. Apaixonado pelos pobres e dedicado integralmente a fazer o bem por meio do empoderamento dos cidadãos, sem assistencialismo. Em longa entrevista ao Sul21, 14-01-2013, o irmão marista Antônio Cechin falou sobre as atividades que influenciaram uma geração de militantes no Rio Grande do Sul e no Brasil. A conversa foi no apartamento onde vive com a irmã Matilde, uma fiel companheira de lutas, na mesma sala de onde, em duas oportunidades, foi retirado por agentes da ditadura militar e levado para a tortura no DOPS. “Ainda bem que esta entrevista não está acontecendo naquela época, em que nada poderia ser dito”, disse no começo da conversa. 

Reticente em conceder a entrevista a princípio, Irmão Cechin (foto de Ramiro Furquim/Sul21) acabou concordando em seguida, dizendo estar falando “em nome do bem dos catadores”. Conhecido nacionalmente como uma espécie de profeta da ecologia, devido ao pioneirismo com as unidades de reciclagem no país, ele fala que “geralmente os que defendem os pobres não são ouvidos” pela grande imprensa. Desde a água da torneira fornecida à reportagem, até as vezes em que parou a conversa para atendimentos de catadores envolvidos no projeto Ecoprofetas, que administra com apoio da Petrobras,Irmão Cechin se mostrou um homem humilde e devoto, além de profundamente dedicado aos movimentos populares.

Um dos fundadores do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), criador da Romaria da Terra e da Romaria das Águas e idealizador da missa em honra a Sepé Tiaraju, ele contou sobre a incompreensão de sua própria congregação quanto a sua filosofia religiosa. “Nós temos na Igreja a última monarquia do mundo. O Papa como o único Deus da verdade absoluta, que não divide o poder. Esta igreja não é a que existe na América Latina”, disse.

Atualmente, Irmão Cechin luta pela recuperação dos 18 galpões de reciclagem que construiu com apoio da Igreja durante os governos do PT em Porto Alegre. Ele denuncia um suposto descaso da atual gestão municipal e responsabiliza também a “burguesia despolitizada”, que não possui consciência ambiental para respeitar os catadores ou começar, em suas próprias casas, as mudanças pelo meio ambiente saudável. “Não só o governo, é toda a sociedade que não tem consciência. Há um preconceito das pessoas com os catadores, principalmente das que moram perto das unidades de reciclagem, que se isolam com muros e grades como se estas pessoas fossem lixo”.

Eis a entrevista.

A luta pela preservação do meio ambiente é uma de suas principais causas. Sua atuação foi pioneira para o surgimento da reciclagem no estado, contribuindo para a organização da atividade dos catadores. Como o senhor começou este trabalho?

Eu comecei a partir das Comunidades Eclesiais de Base (CEB). Fizemos a primeira unidade de reciclagem na Ilha dos Marinheiros, em Porto Alegre. Existia uma mulher que liderava 30 carroceiros em Canoas e pediu apoio das comunidades eclesiais de base para combater o prefeito filhote da ditadura da época (Carlos Loureiro Giacomazzi). Fizemos passeatas e ocupações em frente à prefeitura até o lixão de Canoas ser reaberto. Depois disso, constatamos que também existiam catadores em Porto Alegre. Foi então que começamos, com trabalhadores da Vila Lupicínio Rodrigues e Vila Planetário. Por iniciativa do governo Olívio Dutra, eles foram reassentados e constituídos como carrinheiros e catadores. O sonho deles sempre foi conquistar o Centro, que é a região com lixo de maior qualidade. Nós passamos a empoderar este povo e ocupar também o Centro. Agora, temos um abandono desta atividade em Porto Alegre. Um exemplo é na Rua Paraíba, na vila encostada na Avenida Castelo Branco. Esta vila já incendiou algumas vezes. Por intervenção do governo Olívio, os ocupantes, dos quais existem 80 catadores, tiveram direito de ocupar o lugar para se organizar como unidade de reciclagem. A verba foi transferida ao município no último ano da gestão de João Verle (PT) e o projeto executado pelo prefeito José Fogaça (PMDB). A situação do local é de extremo abandono atualmente, assim como nas demais 16 unidades que construímos em Porto Alegre. Com o apoio dos governos do PT e da Igreja, foram criadas 18 unidades de reciclagem na cidade. Agora, com o projeto da Petrobras que estou executando (Ecoprofetas), estou conseguindo recuperar alguns.

Qual é o problema dos catadores na vila da Rua Paraíba exatamente?


Este local onde fica a vila, na Rua Paraíba, foi tomado pela Prefeitura, que ergueu o prédio de máquinas do DMLU. Agora, ganhamos na Justiça, por decisão do Ministério Público do RS, a devolução daquele galpão de reciclagem. Ele foi construído por nós com R$ 100 mil conseguidos da Igreja há 15 anos. Nos roubaram (o galpão). Agora, com o Ministério Público do RS, estamos recebendo de volta. Existe uma área específica de atuação no Ministério Público para o Meio Ambiente, que se transformou em uma mina de ouro para nós que trabalhamos com ecologia porque o dinheiro das multas das empresas, por decisão judicial do MP, é destinado diretamente às entidades que trabalham pelo meio ambiente. Por exemplo, com recursos que ganhamos de uma multa contra a CGTE em Gravataí, a empresa depositará por dois anos aluguel para trabalharmos com lixo eletrônico. Vamos inaugurar este projeto esta semana, em um prédio de três andares na Rua Voluntários da Pátria. Vou aproveitar o MP-RS e vou desafiar a Igreja e o governo para tentar resolver o problema desta vila na Rua Paraíba.

Porto Alegre tem duas situações que envolvem diretamente a atividade dos catadores: a terceirização do serviço de coleta seletiva do lixo e o programa de Inclusão Produtiva de Condutores de Veículo de Tração Animal (VTAs) e de Veículos de Tração Humana (VTHs) – o que, segundo acusam os críticos, seria uma maquiagem para a aplicação da Lei das Carroças até 2016. Qual a sua opinião sobre essas questões?


Esta Lei das Carroças é desta administração. O vice-prefeito é o autor da lei (Sebastião Melo). É algo contra a Lei Nacional de Resíduos Sólidos, criada pelo governo Lula e que prevê que a catação tem que ser feita diretamente pelos catadores. Porém, a única catação que se fazia em Porto Alegre e que vem reduzindo é feita pelos carrinheiros e carroceiros. Esta lei municipal é para acabar com tração animal e humana, exatamente a atividade de catação que ainda existe em Porto Alegre. Eu até tenho um projeto em desenvolvimento na Engenharia da PUC de um carrinho que não seja mais com tração humana, mas não sai do papel nunca. Na prática, a única diferença é que carroceiros têm um meio de transporte melhor do que o carrinho de mão dos carrinheiros; na verdade, ambos são fundamentais para a saúde da sociedade. Estes ecoprofetas são responsáveis por 70% da reciclagem do lixo da cidade. As coletas feitas pelo poder público não representam 15%.

Na sua opinião, essas decisões da Prefeitura, que podem levar ao fim da atividade do catador, são fruto de uma visão política ou falta de consciência ambiental?

Não só o governo, é toda a sociedade que não tem consciência. O Brasil é o segundo país do mundo em produção de lixo. As atividades dos catadores são vitais para a saúde do meio ambiente. Aqui o governo criou uns contêineres que todos acham uma maravilha, mas está misturando o lixo seco com o orgânico e acabando com a matéria-prima dos recicladores. Por outro lado, quando vejo essas campanhas institucionais sobre a educação eu me contorço de raiva. Esta burguesia não sabe nem separar o lixo em casa e quer falar em educação! Recentemente eu conheci um projeto implantado em São Paulo e no Rio de Janeiro um pouco antes da Rio+20, o “Pimp My Carroça”. Eles foram em direção a uma centena de carroceiros. Um mutirão de carpinteiros ajudou a consertar as carroças, artistas decoraram com grafite, ofereceram serviços de higiene para os trabalhadores. Me comoveu tanto ver isso que pensei: quem dera que, ao invés da Lei das Carroças, Porto Alegre pudesse ter feito isso. Há um preconceito das pessoas com os catadores, principalmente das que moram perto das unidades de reciclagem ,que se isolam com muros e grades como se estas pessoas fossem lixo.

Como o senhor começou esta trajetória a frente de tantas causas?


Eu sou irmão marista. Religioso. Somos 15 irmãos de uma família de origem italiana. Moro com uma delas, a Matilde. Meu primeiro envolvimento como professor de movimentos populares foi no primeiro movimento de juventude religiosa do país, o JEC (Juventude Estudantil Católica) que até hoje não teve paralelo dentro da Igreja. Na época, a Igreja Católica se dividia entre hierarquia e laicado, e Pio XI pensou que seria necessário entregar aos leigos uma missão dentro desta hierarquia, uma militância. Em 1955 eu fui designado pelo bispo auxiliar de Porto Alegre, Dom Edmundo Kunz, a ir ao convento dos monges beneditinos, no Rio de Janeiro. Foi então que comecei a trabalhar com o método conhecido hoje como Teologia da Libertação: ver, julgar e agir. Isso foi minha entrada para um trabalho com jovens, no Colégio Rosário onde eu já era professor. Começamos a descobrir as diferenças de capacidade de aprendizagem dos alunos, introduzimos a primeira feira do livro na cidade, feita em consignação com livrarias e também desenvolvemos a Semana do Estudante. Primeiro em colégios católicos e depois nas escolas leigas. Foi ao conhecer o marxismo, por meio da chilena Marta Harnecker, que passamos a propagar entre todos os estudantes latino-americanos da Igreja lições desta filosofia, deste instrumento global de análise da realidade. Fomos pioneiros em fazer trabalhos nas periferias.

Foi este conceito que o levou a ser perseguido pela ditadura militar?


Enquanto irmão marista, eu já trabalhava ligado a CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) como catequista, evangelizador e criador de Comunidades Eclesiais de Base. Quando estourou a ditadura militar, todos os que trabalhavam na periferia foram considerados comunistas, comedores de criancinhas. Na verdade, só utilizávamos o instrumento global de análise. Na nossa linha religiosa só existe um lado: o que leva para Jesus Cristo, filho de Deus, e que é também o lado dos pobres. Jesus foi perseguido e morreu como um político, com P maiúsculo. Tudo que se faz na vida tem dimensão política. Se ele não fosse político ele teria morrido na cama, aos 85 anos de idade. Ele morreu aos 33 anos, pregado na cruz, por causa da mensagem que trazia. Eu, Leonardo Boff, Frei Beto e tantos outros que ergueram a Teologia da Libertação acabamos perseguidos pelos militares. As fichas catequéticas foram consideradas de conteúdo altamente subversivo pelo órgão fiscalizador da época. O ministro da Educação, Jarbas Passarinho foi em rede nacional na Semana da Revolução, em abril de 1979, falar contra o material que utilizávamos nos colégios. Surgiu uma grande polêmica no país. Nos desfizemos de tudo que tínhamos, mas passamos a ser perseguidos.

O senhor foi preso por duas vezes e sofreu tortura no DOPS.

Me levaram daqui para o DOPS. Fui preso duas vezes, em 1969 e 1972. Nesta mesma mesa eu recebi um pastor norte-americano chamado John Wright, protestante que reuniu jovens católicos. A segunda prisão foi por causa dele. Não foram longas as minhas estadas na prisão. A primeira durou dois dias e na segunda foram dez dias. A segunda realmente foi tortura e tive que ser levado direto para o hospital. Eles queriam saber nomes de clandestinos que a polícia andava caçando. Os estudantes católicos, vendo que as ferramentas estudantis, universitárias e operárias viravam pelegas, resolveram se organizar. A ditadura militar trancou sindicatos e movimentos populares e a Igreja foi a única instituição onde eles não puderam intervir ou colocar seus aliados. Então os militantes e movimentos se refugiaram nos movimentos católicos.

A Comissão Nacional da Verdade pode esclarecer a verdade sobre a prisão ou mesmo fazer a reparação do que ocorreu?

Não sei. Não sei se vou ser interrogado. Não estou torcendo muito (para que aconteça). Demoro alguns dias a voltar ao normal quando tenho que puxar esta parte da minha memória.

O senhor confia na Comissão da Verdade como possibilidade de recontar a história do país?


Algumas coisas já estão sendo reveladas. Assim que a Comissão começou a funcionar já se divulgou a morte de um jovem padre que foi morto no JUC por vingança contra Dom Helder. Como não podiam matar o bispo, se vingaram no melhor padre de sua arquidiocese. Já localizaram aqui no Rio Grande do Sul um prédio na Rua Santo Antonio, onde se praticava tortura. As coisas vão aparecendo. E, apesar de eu ter dito que a juventude católica daquela época não foi substituída, hoje temos uma juventude que está se organizando, o Levante da Juventude, que é muito interessante. Eles começaram no ano passado a fazer os escrachos. A juventude está se politizando.

Qual foi a contribuição do que o senhor chama de ‘farroupilhismo’ para a ditadura militar? 

O manifesto antitradicionalista, elaborado por um grupo de missioneiros que não aceitam essa situação, aponta as falhas deste movimento que não tem nada de tradicionalista. É um gauchismo inventado por Barbosa Lessa, Paixão Côrtes e outros dois jovens do Colégio Júlio de Castilhos em 1948 que, com saudade do interior das fazendas, começaram com este gauchismo aqui em Porto Alegre. É um gauchismo que não vem na linha do povo guarani, que criou o chimarrão, por exemplo: é de origem açoriana. Os guaranis na Missão Jesuíticas dos Sete Povos foram considerados por Voltaire – um dos ilustres intelectuais da Revolução Francesa – em seu romance Candido, como o maior triunfo da humanidade. Um povo de economia eminentemente solidária, sem moedas, apenas na convivência por trocas. Para acabarem com esta experiência, algo completamente diferente do capitalismo trazido de Portugal, os reis da Espanha e Portugal se mancomunaram para um novo Tratado de Tordesilhas e para acabar com as missões aqui. Esta é a fonte da história do RS. E este grande triunfo da humanidade, que nos jogou para história global e influenciou as missões jesuíticas da Argentina e Paraguai, que em 1975 foram proclamadas patrimônio da humanidade pela ONU, não é nem lembrado pela juventude de hoje. Este gauchismo de hoje, dentro dos CTGs, não apresenta militância em nenhum sentido para mudar alguma coisa. Para o gaúcho machista, Deus não pode existir porque não pode haver ninguém acima dele, nem mesmo Deus pode humilhá-lo. O pai patrão, típico da grande fazenda, é o cúmulo da blasfêmia.

O senhor falou há pouco sobre a Teologia da Libertação, que é um movimento que acaba tendo certa oposição por parte de setores mais tradicionais da Igreja…

O que queremos é o retorno do cristianismo às suas origens. A crise moral da Igreja, com a pedofilia de padres, está diminuindo o interesse nas vocações. Está diminuindo a entrada de pessoas no conventos, e as vocações são mais de linha conservadora, que atuam na linha verticalista da religião. É só “eu e Deus”, um cristianismo individual. Ao passo que a Teologia da Libertação, complementada pelo método Paulo Freire, é eminentemente comunitária. Ela cria comunidades, o que foi o grande projeto de Jesus Cristo, com o povo unido trabalhando e transformando a realidade.

O senhor defende que há uma divisão na igreja católica e crítica o conservadorismo da instituição.

Nós temos na Igreja a última monarquia do mundo. O Papa como o único Deus da verdade absoluta, que não divide o poder. Esta igreja não é a que existe na América Latina. A partir de Dom Helder, que criou a CNBB, e do Papa João XXIII, que proclamou a liberdade de consciência, surgiu o modelo da Igreja da Libertação, onde tudo é em comunidade e por meio de debate totalmente livre. Se não há liberdade, não há cristianismo.

O senhor auxiliou na fundação do MST. Como vê o trabalho deste movimento hoje e da Comissão Pastoral da Terra na luta pela reforma agrária no país?

MST surgiu com o padre Arnildo Fritzen, de Ronda Alta, em 1979. Também foi fruto do trabalho das comunidades eclesiais de base no RS. João Pedro Stedile (líder e um dos fundadores do MST) me conheceu quando ele foi assessor da Comissão Pastoral da Terra e decidimos fundar o MST. Depois de duas ocupações organizadas pelas comunidades eclesiais de base de Ronda Alta, Arnildo Fritzen foi até a Emater negociar para os colonos serem assessorados no plantio das novas propriedades. No dia 7 de setembro de 1979, em São Gabriel fizemos a primeira ocupação do que veio a ser o futuro MST, na chamada fazenda Macari. O MST ficou debaixo das asas da igreja até 1984, nas comunidades eclesiais de base. Em Cascavel (PR), em 1989, realizaram um encontro nacional e se criou o movimento organizado como é hoje, sem a dependência da Igreja. Não tem como falar do MST sem falar de São Sepé Tiaraju. João Pedro Stedile é mais devoto do que eu, mas escrevi o texto São Sepé Tiarajú rogai por nós porque fiquei intrigado com este santo que a igreja não reconhecia, mas que o povo canonizou. Quando completou 250 anos de martírio de São Sepé Tiaraju, conseguimos por meio do deputado Sérgio Goergen (PT), integrante do MST, um Projeto de Lei para tornar Sepé Tiaraju herói guarani-missioneiro-riograndense. Foi aprovado por unanimidade na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul. O deputado federal Marco Maia (ex-presidente da Câmara Federal) e o senadorPaulo Paim também o fizeram no Congresso Nacional. Sepé Tiaraju passou a ser herói brasileiro. Colocamos o nome dele no panteão da pátria, ao lado de Tiradentes. Aqui no RS nem se noticiou o fato. (1)

O MST mudou?

Fala-se em divisão interna. Eu não acredito nisso. Considero que eles são ainda o movimento de realização da reforma agrária no país. Eles têm, obviamente, uma linha política, mas mesmo diante dos governos Lula Dilma adotaram independência. Eles fazem a estratégia do “bate e assopra”. É uma luta inteligente, não rompendo com os governos de esquerda. Governos de esquerda dentro do possível. Eu interpreto o Lula, que me conheceu no seu último ano de governo, como um animal político. Ele deu uma virada no Brasil. Nas comunidades de base e nos movimentos populares não se acreditava que um operário seria presidente da República. Todos votavam na hora da eleição na classe dominante. Lula conseguiu e firmou a classe trabalhadora no poder. Porém, tanto ele quanto Dilma têm o governo, mas não têm o poder. O poder está no dinheiro.

Hoje, os conflitos por disputa de terra são o principal problema não enfrentado pelos governos de esquerda. Como o senhor vê esta realidade?

Eles dominam o país. Hoje eles estão com tudo. O negócio da soja, os agrotóxicos, enfim. Todo nosso alimento está envenenado. Os presidentes da República estão tendo câncer e não estão enxergando isso, veja o (presidente da Venezuela, Hugo) Chávez, o Lula. Isto é por causa do veneno. Eu costumo dizer que os mesmos que oprimem o povo pobre são os que oprimem a natureza, que já não aguenta mais. Porém, acredito que cada vez mais a humanidade amadurece para a retomada de uma vida simples. Depois desta retomada dos governos populares na América Latina, por exemplo, principalmente pela atuação do governo do índio Evo Morales (Bolívia), todos estão buscando o bem viver. Aqui em Porto Alegre realizaremos em fevereiro mais uma edição do Caminho de São Sepé Tiaraju. Realizamos este roteiro desde 2006, mobilizando jovens, índios, todos em nome desse sentido ecológico. Este ano repetiremos o roteiro com bicicletas e com a presença do primeiro ativista de bicicleta eleito vereador de Porto Alegre, o Marcelo Sgarbossa (PT). Será um roteiro ciclístico de 300 km, de Rio Pardo a São Gabriel. É uma pedalada nas comunidades de base do campo, e temos o objetivo de reforçar esse sentido ecológico.

Aos 85 anos, existe alguma frente ou alguma coisa que o senhor ainda não fez dentro da sua missão?

A gente sempre sonha. Quero transformar aquela vila (Rua Paraíba) no oitavo povo das Missões Jesuíticas. Vou restaurar aquele lugar e vou colocar na frente da unidade de reciclagem a frase dos índios guaranis tupãbaê – “aqui, se trabalha para Deus”. Essa mística das Missões é maravilhosa. Tudo isso que o Fórum Social Mundial está dizendo hoje, já diziam os jesuítas e os guaranis no interior do RS há 300 anos. Mas meu próximo projeto, claro, é atender abicicletada de São Sepé, que acontece no dia 7 de fevereiro.

Uma curiosidade: o senhor anda de bicicleta?

Não me deixam andar de bicicleta mais, mas eu andaria. Já andei muito de bicicleta. Acompanharei o roteiro de carro. Nossa intenção sempre foi fazer o Caminho de São Sepé Tiaraju a pé, nos moldes do Caminho de Santiago, mas quando fizemos de bicicleta caiu no gosto da juventude. Eles vão numa alegria só!
Nota:
1.- O fato foi noticiado pelas Notícias do dia publicadas pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU, no dia 23-09-2009. Clique aqui. (Nota da IHU On-Line).
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