APRESENTAÇÃO

Textos e silêncios pretende ser um espaço reflexivo ecumênico, fundamentalmente voltado para a vida concreta das pessoas a partir de textos e livros, mas também do caminhar contemplativo e meditativo, da vivência amorosa e solidária dos que, de alguma forma, partilharam comigo suas vidas, dores, sofrimentos e esperanças. A eles - e a vocês - devo a minha vida, o olhar que desenvolvi de existência e a experiência cristã do encontro com o Cristo servidor que nos salva. A eles sou devedor, minha eterna gratidão.

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Polícia Militar mata à larga, como a repressão política na Ditadura


71
Revista Adusp Outubro 2012
Polícia Militar mata à
larga, como a repressão
política na Ditadura
Fausto Salvadori Filho
Jornalista
Ao ignorar recomendações da ONU e da sociedade civil para extinguir as Polícias
Militares, o governo brasileiro evita mexer no modelo de “segurança pública” herdado
do regime militar. O Ministério da Justiça prefere apostar no “estabelecimento de
uma nova cultura policial”. Enquanto isso, persistem as execuções em larga escala,
praticadas pelas PMs em sua guerra permanente contra um inimigo interno: ontem,
os“subversivos”; hoje, os jovens pobres, geralmente negros ou mulatos, que habitam
as periferias das grandes cidades e regiões metropolitanas
Agência Estado
Coletiva promovida para esclarecer execução de seis suspeitos pela Rota, em maio de 2012
B r a s i l
72
Outubro 2012 Revista Adusp
“A notícia é a pior possível”, disse
o chefe dos enfermeiros. Ao entrar
no Hospital Regional de Osasco,
o eletricista Daniel Eustáquio de
Oliveira, 50 anos, sabia apenas que
seu filho, César Dias de Oliveira,
20 anos, havia sido baleado quando
voltava para casa dirigindo a motocicleta
que comprara dez dias antes.
Assim que ouviu as palavras do enfermeiro,
porém, Daniel entendeu
tudo. “Meu filho está morto”, disse.
“Está”, confirmou o enfermeiro.
Daniel começou a chorar. “Mas como?”,
perguntou. “Cinco tiros”, foi
a resposta. “Esses ladrões sem vergonha,
além de tentar roubar meu
filho, ainda mataram ele com cinco
tiros”, desabafou. O enfermeiro o
corrigiu: “Foi a polícia que matou
seu filho”. Daniel parou de chorar
na hora. Na saída, olhou para o grupo
fardado de policiais militares na
entrada do hospital e fez uma promessa:
“Eu vou provar que vocês
mataram um inocente”.
No dia 1º de julho, o filho de Daniel
e o amigo dele, Ricardo Tavares
da Silva, também de 20 anos, que
estava na garupa da moto, entraram
para a lista de 182 pessoas mortas
pela Polícia Militar na cidade de São
Paulo nos sete primeiros meses do
ano, período em que a Secretaria
da Segurança Pública registrou um
total de 907 homicídios. Os números
mostram que, a cada cinco pessoas
assassinadas no município, uma foi
vítima da polícia. Denúncias de abusos
envolveram várias destas mortes,
entre elas a do publicitário Ricardo
Prudente de Aquino, baleado após
fugir de uma abordagem policial, em
19 de julho. Três PMs foram presos
pelo crime, que teve mais repercussão
na mídia do que todos os demais,
por envolver uma vítima que
fugia ao padrão habitual de jovens
negros e pobres da periferia.
Na mesma época em que Daniel,
os dois Ricardos e tantos outros
eram mortos, o Conselho de Direitos
Humanos da ONU aprovava a recomendação
de abolir a Polícia Militar
como forma de combater a violência
do Estado brasileiro. Foi em 30 de
maio, quando o Brasil passou pela
Revisão Periódica Universal do
Conselho, uma espécie de prova à
qual todos os países são submetidos.
Na ocasião, o governo da Dinamarca
sugeriu “abolir o sistema separado
de polícia militar” com o objetivo de
“reduzir a incidência de execuções
extrajudiciais pela polícia”1.
É natural que um olhar estrangeiro
se choque com a existência de
uma PM como a que há no Brasil.
“As polícias militares brasileiras têm
por função manter a ordem e garantir
a segurança interna, seu papel
primordial é de proteção ao cidadão,
e, portanto, a sua militarização não
se justifica”, aponta Adriana Alves
Locha, doutoranda em Sociologia
pela FFLCH-USP e consultora do
Banco Mundial para prevenção do
crime e da violência em áreas urbanas.
Ela lembra que, na maioria dos
países democráticos, a segurança da
população é um trabalho para civis:
soldados e coronéis são usados para
combater inimigos externos, não
para policiar ruas. As polícias militares,
quando existem, têm funções
bem diferentes. Adriana cita o caso
da Gendarmerie francesa, uma força
nacional que lida com “atividades
voltadas primordialmente ao controle
de ameaças à segurança nacional
(ataques terroristas, vigilância de
fronteiras, proteção presidencial)”,
que pode ser chamada para atuar na
segurança interna, mas permanece
“sempre subordinada à autoridade
local, no caso, as prefeituras de polícia,
que são civis e responsáveis pelas
guardas municipais”. No Brasil,
é o contrário: as polícias militares
são consideradas forças auxiliares e
reserva do Exército.
Daniel de Oliveira
Sônia Pinheiro
73
Revista Adusp Outubro 2012
A recomendação do Conselho de
Direitos Humanos da ONU foi ignorada
pelo governo brasileiro, que
não quer ouvir falar em polícia sem
militares. “A solução para a questão
apontada no relatório da ONU — redução
da letalidade policial — não está
vinculada à extinção de alguma das
polícias existentes no Brasil, e sim ao
estabelecimento de uma nova cultura
policial, que, especificamente dentro
da estrutura militar, perpassa uma série
de fatores, desde a entrada desses
policiais na corporação”, afirmou
o Ministério da Justiça, em resposta
à Revista Adusp. Não é uma postura
nova. “As conferências nacionais de
Direitos Humanos, em 2008, e de Segurança
Pública, em 2009, também
recomendaram a desmilitarização das
polícias, mas este parece ser um ponto
totalmente esquecido por nossos governantes”,
afirma Adriana.
O historiador André
Rosemberg aponta
uma das hipóteses que
explicam o modelo
militarizado de policiamento:
“as relações de disciplina
e hierarquia inerentes
às instituições militares
permitem um controle maior
dos soldados, recrutados
na mesma base social sobre
a qual deveria recair a
vigilância mais estreita”
O esquecimento não estava nos
planos da Rede Nacional de Familiares
e Amigos de Vítimas da
Violência do Estado, formada por
entidades de combate à violência
policial em São Paulo, Rio de Janeiro,
Bahia, Minas Gerais e Espírito
Santo, que decidiu usar a recomendação
da ONU como mote para
lançar uma campanha pela desmilitarização
das polícias2. “Um dos
principais entulhos do período escravocrata
e, mais recentemente, da
ditadura civil-militar, é a violência
sistemática de agentes do Estado
contra a nossa própria população”,
afirma o texto da campanha, idealizada
pelo grupo Mães de Maio.
Da periferia saiu outra ação coletiva,
a Campanha contra o Genocídio
da Juventude Negra, reunindo
grupos como o Fórum Municipal de
Hip Hop e a Rede Nossa São Paulo,
que faz a mesma denúncia. Gabriel
di Pierro, da Nossa São Paulo, afirma
que a PM ainda está estruturada
para “cumprir a função social de
controle da população mais pobre”
e carrega uma cultura “profundamente
violenta e muito pouco apropriada
de valores democráticos”.
O atual modelo de policiamento,
que passou intacto por mais de
duas décadas de governos democráticos,
foi implantado pela Ditadura
Militar como parte do aparelho repressivo
destinado a eliminar os inimigos
do regime. O policiamento à
brasileira, contudo, sempre enfrentou
uma divisão em duas instâncias,
uma civil e outra militar, que
remonta ao período regencial. Segundo
o historiador André Rosemberg,
da Unesp, que pesquisou em
seu doutorado a história da polícia
no Império, uma das hipóteses que
explicam a emergência e a força de
um modelo militarizado de policiamento
afirma que “as relações de
disciplina e hierarquia inerentes às
instituições militares permitem um
controle maior dos soldados, recrutados
da mesma base social sobre a
qual deveria recair a vigilância mais
estreita”.
A primeira versão da polícia militar
paulista nasceu em 1831, com
o nome de batismo de Guarda Municipal
Permanente. A corporação
receberia outros nomes nos anos
seguintes, como Corpo Policial Permanente
e Força Pública, antes se
tornar a Polícia Militar do Estado
de São Paulo, em 1970. A vinculação
da polícia paulista ao Exército
começou nos anos 30, como uma
estratégia do governo Getúlio Vargas
para colocar a Força Pública
paulista sob seu comando e usá-las
para reprimir os movimentos que
se opunham ao seu governo. A militarização
da segurança iria chegar
ao auge na ditadura seguinte, instituída
em 1964, que deu mais poderes
às PMs ao mesmo tempo em
que as colocava sob o guarda-chuva
do Ministério do Exército. O ciclo
se completou em 1969, com um
decreto-lei do governo federal que
tirou das ruas as Guardas Civis, ao
declarar que o policiamento ostensivo
fardado passaria a ser exclusivo
dos policiais militares3.
No livro Rota 66, o jornalista
Caco Barcellos recorda como foi o
impacto da chegada dos novos PMs
às ruas do seu bairro, em Porto Alegre,
nos anos 1970. “Os suspeitos,
antes perseguidos de forma injusta
[pelas Guardas Civis], agora muitas
74
Outubro 2012 Revista Adusp
vezes eram mortos sem chance ou
direito de defesa. Não só no meu
bairro pobre, mas também na periferia
de todas as grandes cidades
do país.”
Criada como um dos braços do
aparelho repressivo da ditadura, a
Polícia Militar viria a atuar contra
tudo que pudesse ser considerado
inimigo, fossem militantes de
esquerda, estudantes ou operários
em greve — caso de Santo Dias da
Silva, morto com um tiro nas costas
por um PM em agosto de 1979, dois
meses após o presidente Geisel editar
a Lei de Anistia, que marcaria o
começo do fim do regime militar.
A redemocratização
preservou até uma unidade
como a Rota, que até
hoje tem como função
“a execução de ações de
controle de distúrbios
civis e de contra-guerrilha
urbana e, supletivamente,
ações de policiamento
motorizado” (Decreto
44.447/1999)
O regime chegou ao fim, mas a
máquina de eliminar inimigos da
PM manteve-se intocada. A redemocratização
preservou até uma
unidade como as Rondas Ostensivas
Tobias de Aguiar, a Rota, que
até hoje tem como função, pela
letra da lei, “a execução de ações
de controle de distúrbios civis e de
contra-guerrilha urbana e, supletivamente,
de ações de policiamento
motorizado”, conforme o Decreto
44.447/1999. A atuação no período
ditatorial é motivo de orgulho
para o batalhão, que, em seu site,
vangloria-se de ter feito o “combate
à guerrilha urbana que atormentava
o povo paulista”.
Com os novos tempos, contudo,
era hora de buscar outros inimigos,
sem deixar de lado as práticas recorrentes
de torturas e execuções
sumárias. “Na Ditadura, a polícia
adotou a estratégia de combate ao
inimigo interno, baseado na doutrina
de segurança nacional. Com a
redemocratização, a lógica de guerra
interna foi redirecionada para
o jovem pobre e negro das periferias”,
conta o historiador Danilo
Dara, do grupo Mães de Maio.
Quando a lógica militar penetra
no policiamento, os agentes passam
a pensar mais em termos de inimigos
a serem destruídos do que em
garantir a segurança de uma comunidade.
Daí que as mortes de suspeitos,
em vez de serem exceções,
passam a ser a regra e podem até
ser exibidas como troféu. Há PMs
que fizeram carreira política divulgando
o número de suas vítimas,
como o coronel Ubiratan Guimarães,
que adotou os 111 homicídios
da chacina do Carandiru como seu
número de campanha, ou o capitão
Conte Lopes, da Rota, que dizia ter
mais de 100 mortes no currículo.
Mais recentemente, o tenente-coronel
da Rota Paulo Telhada, com
36 mortes assumidas, candidatou-se
a vereador pelo PSDB. Quando a
morte passa a ser motivo de orgulho,
abre caminho para que cada
homicídio praticado pela PM seja
considerado legítimo, mesmo com
provas em contrário.
Daniel Eustáquio teve um contato
direto com essa lógica militarizada
de segurança naquele 1º de julho,
quando saiu do hospital diretamente
para o local onde seu filho havia sido
morto, na Vila Dalva, zona oeste de
PM aborda motoboy em São Paulo (maio de 2006)
Agência Estado
75
Revista Adusp Outubro 2012
São Paulo. Ali, perguntou ao policial
responsável o que havia acontecido.
“Segundo a guarnição responsável
pela ocorrência, os dois meliantes
vinham descendo com a moto. A
guarnição abriu a sirene e eles empreenderam
fuga. O garupa começou
a atirar e o piloto, que é seu
filho, perdeu o controle da moto,
saiu capotando e levantou atirando”,
respondeu o PM. “Eu olhei bem para
ele, calmo, sem chorar, sem nada,
do jeito que estou conversando com
você agora”, conta Daniel, com uma
segurança que impressiona, como
deve ter impressionado o policial
que o ouviu naquela manhã. “Falei
para ele: ‘Eu não sou perito, sou só
um eletricista, mas você não acha
que tem algo errado nessa cena? Em
primeiro lugar, vocês estão falando
que meu filho capotou. Me mostra
um arranhão na moto’. O PM olhou
para mim, olhou para a moto, não
tinha nada. Continuei. ‘Em segundo
lugar, se meu filho tivesse caído da
moto, teria marca de frenagem da
moto e da viatura. Não tem. Eu vi
o corpo dele e não tem um hematoma,
só os tiros. Outra: os meninos
tomaram tiro do lado esquerdo e no
peito. Por que as cápsulas que os policiais
atiraram estão todas do lado
direito da moto?’ O policial olhou
para mim, olhou para a cena, chegou
bem pertinho de mim e falou:
‘Realmente, tem muita coisa errada
aqui. Os policiais fizeram merda.’”
Nos primeiros anos após o fim da
ditadura, alguns governadores que
haviam participado da resistência ao
regime ditatorial tentaram romper
com a lógica do aparelho repressivo
que agora passavam a comandar.
Foi o caso de Leonel Brizola, no
Rio de Janeiro, que, em seus dois
mandatos (1983-1986 e 1991-1994),
proibiu a PM de invadir barracos de
favelas sem mandado judicial, criou
um Conselho de Direitos Humanos
e Justiça e buscou diminuir a repressão
sobre manifestações populares,
greves e passeatas.
A tentativa brizolista de conciliar
segurança e outros direitos humanos
foi bombardeada por vários
setores da mídia e acabou sepultada
de vez pela gestão Marcelo
Allencar (1995-1999), que criou a
“gratificação faroeste”, prêmio de
bravura concedido para policiais
envolvidos em ações violentas. A
derrota foi reconhecida por Carlos
Magno Nazareth Cerqueira, comandante
geral da PM no governo
Brizola: “É certo que falhamos.
Agência Estado
Mortos do Carandiru (1992): impunidade completou 20 anos
76
Outubro 2012 Revista Adusp
Não conseguimos implantar o modelo
democrático que defendíamos
(...) não conseguimos fazer a polícia
entender que a sua principal tarefa
era prender e não matar”4.
Em maio de 2006, o Estado
paulista comandou suposta
reação aos ataques do PCC,
que haviam matado 43
agentes públicos. A reação da
PM e grupos de extermínio
elevou para 493 o número de
mortos: o regime democrático
podia, em nove dias, matar
tantas pessoas quanto a
Ditadura em duas décadas
São Paulo enfrentou o mesmo
fracasso quando tentou mexer com
o legado da Polícia Militar, durante
os governos de Franco Montoro
(1983-1987) e Mário Covas (1995-
1999 e 1999-2001). Montoro apresentou
uma proposta de reforma
da PM prevendo a extinção da Rota,
que não foi adiante, e criou um
programa que buscava coibir a violência
policial, ao afastar por seis
meses os policiais envolvidos em
ocorrências com morte. Após o governo
Luiz Antonio Fleury Filho
(1991-1995) promover uma escalada
da violência policial que desembocaria
no massacre do Carandiru
(vide p. 79), Covas retomou as políticas
de Montoro e ainda criou um
projeto de emenda constitucional
que pregava o fim da Polícia Militar,
na esteira da repercussão do
episódio da Favela Naval. Covas
morreu em 2001, e junto com ele os
governos tucanos enterraram a busca
por uma polícia democrática.
A execução de 12 pessoas numa
emboscada da rodovia Castelinho,
um ano após a morte de Covas,
marcou uma guinada na política de
segurança pública tucana, a ponto
de levar o secretário de Segurança
Pública do governo Covas, José
Afonso da Silva, a fazer um desabafo
que lembra o do seu colega
brizolista. “A nossa era uma política
de segurança democrática, o que
significava o respeito aos direitos
fundamentais da pessoa humana.
Depois a política tomou outro rumo,
especialmente no que tange à
ação da Polícia Militar”5.
O “outro rumo” tomado pela política
de segurança paulista chegou
ao seu nível mais brutal em maio de
Ana Maria, viúva de Santo Dias, no enterro do operário (1979)
Agência Estado
77
Revista Adusp Outubro 2012
2006, quando o Estado comandou
uma suposta reação aos ataques da
facção criminosa Primeiro Comando
da Capital (PCC), que haviam matado
43 agentes públicos. A reação da
polícia e dos grupos de extermínio
elevou para 493 o número de mortos,
revelando que o regime democrático
podia, em nove dias, matar tantas
pessoas quanto a Ditadura Militar
em duas décadas (tomando-se como
referência o número de mortos e desaparecidos
políticos reconhecidos
oficialmente até agora). Boa parte da
opinião pública se mostrou favorável
ou indiferente aos crimes, por considerá-
los uma reação necessária contra
o PCC, o monstro do momento.
Nem todo mundo se lembrou
de que o Estado havia participado
da gênese do monstro, ao estimular
a política de encarceramento em
massa sem resolver os problemas de
abusos nos presídios, que deram ao
PCC a força necessária para se legitimar
entre os presos, como afirma o
relatório “São Paulo Sob Achaque”,
produzido em 2011 pela Clínica Internacional
de Direitos Humanos da
Faculdade de Direito de Harvard em
parceria com a ong Justiça Global.
Os crimes de maio de 2006 revelam
de novo a PM agindo com uma
lógica de Exército em plena guerra,
buscando causar o maior número
possível de baixas no que considera
ser o campo inimigo. No dia em que
seu filho Edson Rogério, um gari
de 29 anos, foi assassinado, Débora
Maria havia recebido um aviso de
um parente policial militar: naqueles
dias, quem ficasse “de bobeira
na rua” seria considerado inimigo
da polícia. Por ser trabalhador, seu
filho não se importou com o aviso,
achando que não tinha o que temer.
Depois que ele foi morto, Débora
se juntou a outras mães de vítimas
da violência policial e criou o grupo
Mães de Maio para lutar por justiça.
Uma luta difícil, já que há uma
série de obstáculos para punir os crimes
praticados pelos policiais. “Temos
pouco controle sobre as nossas
polícias”, afirma Adriana. Existem as
corregedorias, que podem punir os
policiais mas não têm independência,
e há as ouvidorias, que têm independência
mas não poder de punição.
Até 1996, os PMs eram julgados
apenas por seus pares, na Justiça militar,
até em casos de homicídio doloso
(com intenção). Uma lei transferiu
para a justiça comum o julgamento
por esses crimes, mas ainda restam
privilégios. Quando um PM mata alguém
em serviço, o crime não é registrado
como homicídio, mas como
“resistência seguida de morte”, uma
categoria em que, mesmo antes de
qualquer investigação, o policial aparece
como vítima e o morto, como
indiciado. Além de contaminar a investigação,
a categoria também afeta
os processos, que vão para as varas
criminais comuns, em vez de seguir
para o Tribunal do Júri, como qualquer
homicídio doloso. Em 2007, um
relatório da ONU sobre execuções
extrajudiciais no Brasil sugeriu que
o Brasil abandonasse o registro das
resistências, consideradas uma “carta
branca” para os abusos da polícia.
Mas esta recomendação (também)
foi ignorada.
Daniel chegou a uma
testemunha-chave que contou
ter visto César e o amigo
serem executados pela PM,
enquanto gritavam: “Pelo
amor de Deus, me socorre
que eu não sou bandido, não
me deixa morrer”. Só então,
seis PMs acusados pelos
assassinatos foram presos
Nos últimos anos, o Brasil parece
estar avançando ainda mais
na mistura de militarização com
segurança pública e até outros setores.
O governo Lula sancionou
em 2010 uma lei que atribui poder
Em 2001, coronel Ubiratan, que comandou massacre do Carandiru, desfila com farda de 1932
Agência Estado
78
Outubro 2012 Revista Adusp
de polícia aos militares, que agora
podem revistar pessoas, veículos e
embarcações e prender pessoas suspeitas
em áreas de fronteira6. No
Rio de Janeiro, a implantação das
Unidades de Polícia Pacificadoras
(UPPs) tornou-se a principal ferramenta
da política de segurança. Em
São Paulo, a gestão Gilberto Kassab
chamou oficiais reformados da PM
para administrar as 31 suprefeituras
e a maior parte das chefias de gabinete,
além de atuar em órgãos tão
diferentes como o Departamento
de Transportes Públicos, a Defesa
Civil e até o Serviço Funerário. Enquanto
a militarização ganha cada
vez mais força, discussões sobre outros
modelos de segurança parecem
esquecidos do debate público.
Quem não se esquece são os
pais, as mães e os filhos das vítimas
da violência policial. Organizandose
como podem, sozinhos ou em
grupo, eles se movimentam e já
conquistam suas primeiras vitórias.
Após seis anos de luta, a mãe de
maio Débora conseguiu que o Instituto
Médico Legal de São Paulo
fizesse a exumação do corpo de seu
filho, atendendo a um pedido do Ministério
Público. A exumação revelou
que Edson havia sido enterrado com
uma das balas ainda no corpo, mostrando
que houve falhas na investigação
do homicídio. É uma vitória
parcial, que serve para fortalecer a
proposta das Mães de Maio de federalizar
a investigação desses crimes.
Enquanto isso, vendo que as investigações
da polícia sobre a morte
de seu filho não pareciam promissoras,
Daniel pediu licença do emprego
por 45 dias e passou a conduzir suas
próprias investigações, que, entre outras
provas, chegaram a uma testemunha-
chave que contou ter visto
Ricardo e César serem executados
pela PM, enquanto gritavam “Pelo
amor de Deus, me socorre que eu
não sou bandido, não, não me deixa
morrer”. “Ela aceitou depor porque,
quando tinha 12 anos, a polícia
matou o irmão dela”, conta Daniel.
O esforço do pai foi recompensado
com a prisão de seis policiais militares
acusados pela morte dos dois meninos.
“A polícia não tem o direito de
matar. Existe cadeia para quê, existe
justiça para quê?”, pergunta o pai,
que hoje leva uma tatuagem com um
retrato do filho no antebraço direito,
em cima da inscrição “Meu Herói”.
Notas
1 United Nations. Draft report of the Working Group on
the Universal Periodic Review - Brazil. http://www.
upr-info.org/IMG/pdf/a_hrc_wg.6_13_l.9_brazil.pdf
2 Desmilitarização das polícias do Brasil. http://www.
avaaz.org/po/petition/Desmilitarizacao_das_Policias_
do_Brasil
3 NEME, Cristina. “A Instituição Policial na Ordem Democrática:
o caso da Polícia Militar do Estado de São
Paulo”. FFLCH-USP. São Paulo, 1999.
4 CERQUEIRA, Carlos Magno Nazareth. O futuro de uma
ilusão: o sonho de uma nova polícia. Rio de Janeiro:
Freitas Bastos Editora, 2001.
5 Revista Adusp 38, p. 68, 2006
6 SOUZA, Luís Antônio Francisco de. “A militarização da segurança”.
Le Monde Diplomatique Brasil. Março, 2012.
Mortos de Eldorado dos Carajás (1996)
Ari Souza/Agência Estado
79
Revista Adusp Outubro 2012
Crimes das PMs brasileiras
23/4/1975 – Rota 66: Três estudantes são mortos por PMs da Rota, que adulteram a cena do crime para
incriminar as vítimas. Mesmo com a descoberta da fraude, a Justiça Militar absolveu todos os acusados.
30/10/1979 - Santo Dias: Operário e militante da Pastoral Operária, Santo Dias da Silva é morto com
um tiro nas costas por um PM enquanto distribuía panfletos convocando operários para uma greve.
26/7/1990 - Acari: 11 adolescentes são sequestrados e desaparecem na Baixada Fluminense. Investigações
apontaram a participação de policiais, mas ninguém foi preso e o crime prescreveu em 2010. A tragédia
deu origem ao grupo Mães de Acari, que teve uma integrante morta em 1993.
2/10/1992 – Carandiru: durante uma rebelião sem reféns, a PM invade o Pavilhão 9 da Casa de Detenção,
em São Paulo, e mata 111 presos, vários deles com sinais de execução. O comandante da ação, coronel
Ubiratan Guimarães, acabou absolvido e elegeu-se deputado estadual. Novo júri, com outros réus, está
marcado para 2013.
23/8/1993 – Candelária: sete meninos e um adolescente são mortos enquanto dormiam sob uma marquise
no centro do Rio. Três PMs foram condenados pelo crime.
30/8/1993 – Vigário Geral: PMs de um grupo de extermínio, os Cavalos Corredores, matam 21 moradores da
comunidade, no Rio de Janeiro, em retaliação pela morte de quatro colegas. Sete policiais foram condenados.
9/8/1995 – Corumbiara: Durante reintegração de posse de fazenda ocupada por trabalhadores rurais
sem-terra, PM de Rondônia e jagunços matam 12 pessoas.
17/4/1996 – Eldorado dos Carajás: Mandada para desocupar estrada ocupada por militantes do Movimento
dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), tropa da PM do Pará mata 19 pessoas a tiros e golpes
de facão. Os dois oficiais PMs responsáveis pela ação, Mário Colares Pantoja e José Maria Pereira de Oliveira,
foram condenados.
3/3/1997 – Favela Naval: Durante blitz em Diadema (SP), o soldado PM Otávio Lourenço Gambra, o
Rambo, mata a tiros o conferente Mário José Josino. A cena foi filmada e exibida no Jornal Nacional, estimulando
debate sobre desmilitarização da PM. Rambo foi preso e condenado.
31/3/2005 – Baixada Fluminense: Grupo mata 30 pessoas em diferentes pontos de Nova Iguaçu e Queimados,
na maior chacina da história do Estado. Sete PMs foram acusados pelo crime.
5/2006 - Crimes de Maio: Numa reação a ataques do PCC, grupos de extermínio formados por PMs
praticam execuções aleatórias em São Paulo e outras cidades, que fazem número de mortos chegar a 493
em nove dias.
2006 – Matadores do 18: Grupo de extermínio formado por policiais do 18º Batalhão, na zona norte de
São Paulo, é responsabilizado pela morte de 17 pessoas, entre elas o tenente-coronel PM José Hermínio
Rodrigues, que investigava os crimes.
27/6/2007 – Complexo do Alemão: “Megaoperação policial” na comunidade termina com 19 mortos.
Relatório da Secretaria de Direitos Humanos apontou sinais de execução em pelo menos seis deles.
11/8/2011 – Juíza Patrícia Acioli: Magistrada que investigava o crime organizado é assassinada com 21
tiros em Niterói (RJ). Investigações apontaram o envolvimento de 11 PMs, entre eles o então comandante
do Batalhão de São Gonçalo, tenente-coronel Cláudio Luiz Silva.
12/9/2012 – Várzea Paulista: PM invade chácara e mata nove pessoas que estariam participando de um
“tribunal do crime” organizado pelo PCC para julgar um suspeito de estupro. Entre os mortos, a vítima do
tribunal. Segundo o governador Geraldo Alckmin, “quem não reagiu está vivo”.

Arcebispo de Cantuária: "Meu sucessor precisa de um jornal em uma mão e uma Bíblia na outra"


Últimas Notícias

Arcebispo de Cantuária: "Meu sucessor precisa de um jornal em uma mão e uma Bíblia na outra"

COMUNHÃO ANGLICANA NEWS SERVICE
7 de novembro, 2012 - 
ACNS
Canadenses ACC-15 delegados com o arcebispo de Canterbury: LR Dean Peter Elliott, Bispo Sue Moxley, o arcebispo Rowan Williams, Suzanne Lawson.
Arcebispo de Canterbury Rowan Williams, disse hoje que o seu sucessor ia ter para mapear a visão bíblica da humanidade e da comunidade para as piores situações na sociedade.Falando na conferência de imprensa final, após o final do Conselho Consultivo Anglicano na Nova Zelândia, o Arcebispo Williams disse que os assuntos discutidos na reunião - incluindo mudanças ambientais e acabar com a violência doméstica - ". realmente perguntas sobre o tipo de humanidade que estamos procurando promover e servir, que é uma questão profundamente cristã" foram Ele disse que pensou que quando as pessoas estavam sondando a igreja em certas questões, eles realmente estavam perguntando como a Igreja poderia ajudá-los a "ser realmente humano". "Acreditamos que, como igreja, temos recursos inigualáveis ​​para enriquecer a humanidade dessa maneira."





Em resposta a uma pergunta sobre o que as qualidades do próximo arcebispo de Canterbury precisa ter, ele citou Karl Barth, que ele descreveu como "o maior teólogo do século 20." "Eu acho que foi colocado muito bem por um teólogo do século passado que disse: "Você tem que pregar com uma Bíblia em uma mão e um jornal na outra". "Você tem que ter referência cruzada o tempo todo e dizendo: 'Como é que a visão da humanidade e da comunidade que é colocado diante de nós no Bíblia mapa para estas questões da pobreza, da privação, violência e conflito? " E você tem que usar o que você lê no jornal para solicitar e dirigir as perguntas que você colocar a Bíblia: 'Onde é que isto vai me ajudar' "Então, [a respeito das qualidades de seu sucessor] Eu acho que alguém que gosta de ler a Bíblia e gosta de ler jornais seria um bom começo! " Nesta última conferência de imprensa sempre como o presidente da ACC, o arcebispo de Canterbury também disse à imprensa que reuniu os membros da ACC teve "um casal realmente muito notavelmente construtiva de semana juntos. " Em resposta a perguntas da imprensa sobre o progresso que o ACC fez mais de seu tempo em Santo Auckland Catedral da Trindade, Abp Williams mencionou, entre outros temas, a resolução sobre os protocolos para o testemunho cristão em um mundo plural. A resolução foi aprovada pelo ACC naquela manhã. "Nós não manipular, não intimidar, não minar, tentamos dialogar, e teria sido bom ter pouco mais de tempo para ancorar que, em situações específicas ... mas todo mundo sabe das dificuldades em certas situações, na Nigéria, no Sri Lanka, onde a igreja é contra oposição muito violento às vezes. Mas mesmo assim, queria afirmar esses princípios. " Ele disse que o padrão da ACC reunião, realizada entre 27 de Outubro e hoje (07 de novembro) tinha sido sobre a elaboração de uma "imagem política para a Comunhão, bem como um trabalho bastante intensivo de onde vai ser prático em regiões e nações."
 

quinta-feira, 8 de novembro de 2012

GENOCIDIO - movimentos exigem demissão do Secretário da Segurança Pública e do Comandante da PM paulista


Movimentos exigem demissão do Secretário Segurança Pública e do Comandante da PM Paulista

Após os últimas ações violentas da PM que acabaram com a morte de 2 jovens motoboys negros e de muita pressão dos movimentos negros e sociais, a Comissão de Direitos Humanos realizou na tarde desta quarta-feira, 09/06, uma audiência pública sobre com o tema: “Violência Institucional e o Estado Racista: as ações das polícias no estado de São Paulo”. O atividade, que teve grande participação popular, foi acompanhada também por militantes da UNEafro de diversas regiões (Parque São Rafael, Zona Sul, Zona Norte, Santa Isabel, Poá e Mogi das Cruzes).

A Frente Parlamentar de Promoção Social e Igualdade Racial e dezenas de movimentos, tais como MNU, Tribunal popular, Circulo Palmarino, CONEN, UNEGRO, entre outros, também estiveram presentes. Entre as personalidades presentes, Hélio Bicudo que apontou a impunidade como grande obstáculo a ser enfrentado. Para ele, “esse fato, e também o julgamento de crimes cometidos por policiais pelo Tribunal de Justiça Militar, contribui para o aumento no número de casos de violência cometidos pela polícia”.

O coronel Luiz Castro Júnior, chefe da diretoria de polícia comunitária de São Paulo representou o Governo de SP e destacou que a Polícia Militar está aberta às apurações, destacando o efetivo trabalho da Corregedoria da PM, que vem apurando os casos em que há participação de policiais.

Milton Barbosa, representante do Movimento Negro Unificado, destacou avanços na luta contra a impunidade: "É importante perceber que estamos avançando na luta pela garantia de direitos, aprofundando a democracia em nosso país. Apesar de todo o cerco que nos fazem, estamos sim avançando em nível nacional".

Douglas Belchior, membro do Conselho Geral da UNEafro, fez a leitura formal do documento apresentado pelos movimentos. Para ele a reação contra a violência (acrescida do preconceito racial) já teve início. Ressaltou a articulação dos movimentos negros com as forças sindicais, visando denunciar crimes de violência cometidos por quem deveria defender a sociedade. Belchior denunciou ainda que, mesmo com a repercussão recente dos casos de morte de dois motoboys por policiais militares, o governo estadual se recusou a dialogar com os movimentos sociais.

Ainda de acordo com Douglas Belchior, diversas medidas poderiam contribuir para a reversão do atual quadro: a instituição de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) das polícias, a desmilitarização e unificação das polícias e a instituição de grupos de trabalho temáticos.

Diversos representantes de movimentos sociais relataram casos de violência cometidos por policias, dentre eles, o movimento Mães de Maio, que é formado por familiares de pessoas que foram mortas pela PM no ano de 2006.

Estiveram presentes também os deputados José Augusto (PSDB), Maria Lúcia Prandi (PT), o ex-deputado estadual Renato Simões, o deputado Raul Marcelo (PSOL), Adriano Diogo (PT), Fausto Figueira (PT), Olimpio Gomes (PDT), Maria Lúcia Prandi (PT), além do presidente da Comissão de Direitos Humanos, deputado José Candido (PT).










TEXTO INICIAL DO DOSSIE ENTREGUE À COMISSÃO ESPECIAL DE DIREITOS HUMANOS DA ALESP
09 de junho de 2010
À
Comissão Especial de Direitos humanos da Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo;
Senhores(as) Deputados(as);
Presidente da Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo;
Gabinete do governador do Estado de São Paulo Engº Alberto Goldman.


Prezados Deputados e Deputadas,


As organizações do Movimento Negro, Movimentos Sociais do Campo e da Cidade, Cursinhos Comunitários, Sindicatos, Associações e demais grupos organizados que a esta subscreve, apresentam este documento, síntese de nossa indignação e revolta diante da barbárie a qual a população negra de São Paulo é submetida. Não bastassem as mazelas sociais que afligem historicamente esta população por meio do subemprego, do desemprego, da falta de moradia, dos serviços precários de saúde e educação, da falta de oportunidades e do desumano e permanente preconceito e discriminação racial em todo e qualquer ambiente social,

Herança do trato escravocrata, o Estado e suas policias mantém uma atuação coercitiva, preconceituosa e violenta dirigida a população negra. Desrespeito, agressões, espancamentos, torturas e assassinatos são práticas comuns destas instituições. Comuns nos mais de 350 de escravidão. Comuns na pós-abolição. Comuns nos períodos de ditaduras. Comuns em nossos dias.

Apesar de deter uma Constituição reconhecida internacionalmente pela valorização à cidadania e aos diretos humanos, bem como de ser signatário de diversos tratados, convenções e pactos internacionais de defesa dos direitos humanos e de combate a todos os tipos de preconceito, discriminação e racismo (entre elas a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, ratificada pelo Brasil 1969; O Pacto internacional sobre direitos civis e políticos, ratificado pelo Brasil em 1992; e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, ratificada pelo Brasil em 1992), o Estado Brasileiro, ao contrário de fomentar a prática dos Direitos Humanos, coloca-se como agente violador e promotor da violência e da morte.
Entendemos que, por conta da permanente prática de violações, do descaso e até de estímulo a ações violentas vindas das autoridades do Estado de São Paulo, apresentam-se condições jurídicas para que as vítimas, seus familiares e as organizações representativas dos movimentos sociais inquiram uma vez mais esta casa legislativa exigindo providências contra a violência que tem destruído centenas de vidas, em sua maioria de jovens negros.
Um País que quer ser protagonista e mesmo árbitro das grandes questões internacionais não pode permitir constantes violações de sua própria Constituição e a legislação internacional. Acima de tudo, um país comprometido com a justiça e com o direito humanos, não pode patrocinar o etnocídio de uma população, como tem feito.

Do histórico recente

Em Maio de 2006, o estado de São Paulo vivenciou um dos episódios mais emblemáticos da situação de violência contra negros e pobres: policiais e grupos paramilitares de extermínio ligados à PM promoveram um dos mais vergonhosos escândalos da história brasileira. Em “resposta” ao que se chamou na grande imprensa de "ataques do PCC", foram assassinadas, ao menos, 500 pessoas - que hoje constam entre mortas e desaparecidas. A maioria delas, jovens negros, afro-indígenas e pobres – executadas sumariamente sem qualquer possibilidade de defesa.

Conforme relatório da Organização das Nações Unidas para execuções sumárias e extrajudiciais, apresentado à ONU em maio de 2008, os policiais militares e civis brasileiros matam em serviço e fora de serviço. Porém nenhuma investigação é feita em relação ao pretexto para a execução, isto é, o suposto confronto. Os casos são classificados de "Resistência Seguida de Morte" ou "Auto de Resistência", e a investigação se concentra na vida do morto. Sabe-se que os policiais são preparados prática e ideologicamente para matar. Por outro lado, os movimentos negros, movimentos sociais e sindicais que têm se organizado para a defesa dos direitos, vêm sendo violentados e perseguidos em constantes campanhas de criminalização.

O citado relatório da ONU, assinado por Dr. Philip Alston, em Missão ao Brasil, diz textualmente;

“O Brasil tem um dos mais elevados índices de homicídios do mundo, com mais de 48.000 pessoas mortas a cada ano. Os assassinatos cometidos por facções, internos, policiais, esquadrões da morte e assassinos contratados são, regularmente, manchetes no Brasil e no mundo. As execuções extrajudiciais e a justiça dos vigilantes contam com o apoio de uma parte significativa da população que teme as elevadas taxas de criminalidade, e percebe que o sistema da justiça criminal é demasiado lento ao processar os criminosos. Muitos políticos, ávidos por agradar um eleitorado amedrontado, falham ao demonstrar a vontade política necessária para refrear as execuções praticadas pela polícia.

Essa atitude precisa mudar. Os Estados têm a obrigação de proteger os seus cidadãos evitando e punindo a violência criminal. No entanto, essa obrigação acompanha o dever do Estado de garantir o respeito ao direito à vida de todos os cidadãos, incluindo os suspeitos de terem cometido crimes. Não existe qualquer conflito entre o direito de todos os brasileiros à segurança e à liberdade em relação à violência criminal, tampouco o direito de não ser arbitrariamente baleado pela polícia. O assassinato não é uma técnica aceitável nem eficaz de controle do crime.”

No ano de 2008, em São Paulo, foram atribuídos a “resistência seguida de morte” 431 homicídios. Entrevistada pelo Jornal Brasil de Fato, a advogada do Programa de Justiça da Conectas Direitos Humanos, Marcela Fogaça Vieira, disse que:

“tudo é feito de forma a ajudar os policiais assassinos a ficarem impunes. O maior problema está no boletim de ocorrência feito pelos próprios policiais como “resistência seguida de morte” ou “auto de resistência”, justamente pelo fato de que são invertidos os papéis; os policiais figuram como vítimas do crime de resistência, enquanto a pessoa que morreu figura como indiciado e não como vítima de homicídio. Ou seja, o homicídio praticamente desaparece e como o ‘indiciado’ está morto, o inquérito policial é frequentemente arquivado”.

No final do ano de 2009 a Human Rights Watch, ONG internacional de direitos humanos, divulgou relatório dando conta de que a execução extrajudicial de suspeitos se tornou um dos flagelos das polícias no Brasil, em especial no Rio de Janeiro e em São Paulo.

Divulga
do no último dia 26 de Maio/10, o Relatório Anual sobre Direitos Humanos da Anistia Internacional, em sua edição 2010, registrou críticas veementes a cerca da violência policial no Brasil. Os dados do relatório são referentes ao ano de 2009.

Entre alguns dos casos citados no relatório ligados à violência policial, a Anistia criticou estratégias específicas, como a “Operação Saturação”, da polícia paulista, que prevê a ocupação de comunidades por longos períodos com justificativa no combate ao narcotráfico - em especial, a ocorrida no Jardim Paraisópolis, bairro da zona Sul de São Paulo, em fevereiro de 2009. Segundo a entidade, houve registro de queixas por membros da comunidade de uso excessivo de força, intimidações, revistas arbitrárias e abusivas, extorsão e roubo por parte dos policiais.

Conflitos armados por terra, violação de direitos de trabalhadores e de povos indígenas, despejos forçados e políticas de limpeza em favelas (especialmente no Estado de São Paulo) também foram citados.

Ainda mais recente, o comunicado da ONU, datado de 1º de Junho de 2010, sacramenta o estado de barbárie vivida pela população brasileira, em especial negros e negras. O professor Philip Alston, Relator Especial da ONU sobre execuções extrajudiciais, registrou:

"O dia-a-dia de muitos brasileiros, especialmente aqueles que vivem em favelas, ainda é vivido na sombra de assassinatos e violência de facções criminosas, milícias, esquadrões da morte e da polícia..”

O Relatório de Seguimento levanta dados sobre o progresso que o Brasil tem feito para reduzir mortes pela polícia desde a sua visita ao país, em 2007.

"Atualmente, a situação não mudou dramaticamente. A polícia continua a cometer execuções extrajudiciais em taxas alarmantes, e eles geralmente não são responsabilizados por isso."

"Autos de Resistência continuam a uma taxa muito grande", disse ele, referindo-se mortes causadas pela polícia que são depois relatadas como tendo ocorrido em auto-defesa. "Houve pelo menos 11 mil mortes registradas como ‘resistência seguida de morte’ em São Paulo e no Rio de Janeiro entre 2003 e 2009. As evidências mostram claramente que muitas dessas mortes na realidade foram execuções. Mas a polícia imediatamente as rotula de ‘resistência’, e eles quase nunca são seriamente investigados. O Governo ainda não acabou com esta prática abusiva”.

“resistências seguidas de morte” aumentaram em São Paulo desde 2007. Ele pediu ao Brasil para "abolir esta categoria que permite uma licença para atirar para a polícia, e para investigar esses assassinatos como quaisquer outras mortes."
Do Estado Penal e Policial e a “Resistência Seguida de Morte”

Trata-se de um Estado Policial e Penal, extremamente habituado a policiar, julgar, condenar e punir uma ampla parcela de seus cidadãos e cidadãs, sobretudo a maioria mais pobre e negra. Um Estado célere para praticar prisões preventivas e manter presas, sem julgamento, pessoas que na maior parte das vezes cometeram (ou supostamente cometeram) pequenos delitos.

Um Estado que aplica para esses crimes e para os praticantes do pequeno comércio de drogas, denominado de "crime hediondo", penas colossais.

Basta apenas dar uma passada breve pelas estatísticas de detenções verificadas no país - que só perdem em proporção populacional para as dos Estados Unidos da América. Já as estatísticas de tortura policial são campeãs mundiais!

E ainda, depois do julgamento, é esse mesmo Estado Penal que não respeita as garantias previstas em sua própria Lei de Execuções Penais, em grande parte pela omissão e inoperância do Poder Judiciário (muitas vezes agindo assim de maneira deliberada). Além disso, tal Estado tem também o seu lado exterminador.

Do primeiro trimestre de 2009 ao primeiro trimestre de 2010, a taxa de ocorrências policiais no Estado de São Paulo que acabaram em homicídios e foram registradas como "resistência seguida de morte", AUMENTOU 40%, segundo dados oficiais da própria Secretaria de Segurança Pública de São Paulo.


Do crime de tortura


A tortura é a imposição de dor física ou psicológica por crueldade, intimidação, punição, para obtenção de uma confissão, informação ou simplesmente por prazer da pessoa que tortura.
Em nosso ordenamento jurídico a tortura é considerada um crime inafiançável e insiscestível de graça ou indulto.
O crime de tortura consiste em crime material e caracteriza-se com a consumação de sofrimento à pessoa torturada, tanto física quanto psicológica.

A Lei nº 9.455, de 07 de abril de 1997 define o crime de tortura e as penas, conforme transcrevemos abaixo:

"Art. 1º Constitui crime de tortura:
I - constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental:
a) com o fim de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira pessoa;
b) para provocar ação ou omissão de natureza criminosa;
c) em razão de discriminação racial ou religiosa;

II - submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo.
Pena - reclusão, de dois a oito anos.

§ 1º Na mesma pena incorre quem submete pessoa presa ou sujeita a medida de segurança a sofrimento físico ou mental por intermédio da prática de ato não previsto em lei ou não resultante de medida legal.
§ 2º Aquele que se omite em face dessas condutas, quando tinha o dever de evitá-las ou apurá-las, incorre na pena de detenção de um a quatro anos.
§ 3º Se resulta lesão corporal de natureza grave ou gravíssima, a pena é de reclusão de quatro a dez anos; se resulta morte, a reclusão é de oito a dezesseis anos.
§ 4º Aumenta-se a pena de um sexto até um terço:
I - se o crime é cometido por agente público;
II - se o crime é cometido contra a criança, gestante, deficiente e adolescente;
III - se o crime é cometido mediante seqüestro.
§ 5º A condenação acarretará a perda do cargo, função ou emprego público e a interdição para seu exercício pelo dobro do prazo da pena aplicada.

§ 6º O crime de tortura é inafiançável e insuscetível de graça ou anistia.
§ 7º O condenado por crime previsto nesta Lei, salvo a hipótese do § 2º, iniciará o cumprimento da pena em regime fechado.

Art. 2º O disposto nesta Lei aplica-se ainda quando o crime não tenha sido cometido em território nacional, sendo a vítima brasileira ou encontrando-se o agente em local sob jurisdição brasileira."

A criminalização da prática da tortura no âmbito internacional foi um importante acontecimento histórico. A Convenção das Nações Unidas contra Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos e Degradantes, lançada pela ONU em 1984, foi ratificada por cerca de 124 países que se comprometeram a cumprir as determinações desse documento.

O relatório da ONU sobre a tortura no Brasil, lançado em 2007, denuncia que essa prática é "sistemática" e "generalizada", principalmente em suas carceragens e penitenciárias. Além disso, o uso da tortura na atividade policial é prática corrente e diária. As vítimas são, em sua maioria, jovens, afro-descendentes, moradores de áreas pobres, autores ou suspeitos de crimes comuns.

Importante destacar que o Brasil aderiu à Convenção das Nações Unidas contra Tortura, ou seja, é um dos países que ratificou esse documento e que se comprometeu a cumprir as suas determinações. Em 2006, o país também ratificou o Protocolo Facultativo à Convenção, que obriga o Estado a constituir um Comitê Nacional para Prevenção da Tortura.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 determina que ninguém pode ser submetido a tortura, a pena de morte ou a tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes, ao qual adere o Brasil.

(tema elaborado a partir do seguinte trabalho: Costanze, Bueno Advogados. (Crime de Tortura). Bueno e Costanze Advogados, Guarulhos, 29.03.2008. Disponível em : . acesso em : 08 de junho de 2010).


Da conjuntura da Violência

Neste 1º Semestre de 2010 a população de São Paulo assistiu, aterrorizada, a uma onda de crescimento da violência praticada pelas diversas polícias, seja do Estado (Civil e Militar), seja Guardas Municipais de diferentes cidades.

No último período, as manchetes das grandes mídias têm sido ocupadas por informações dando conta do aumento significativo de homicídios. Já em Fevereiro/10, o balanço dos índices de criminalidade divulgados pela SSP-SP (Secretaria de Segurança Pública de São Paulo) apontava que, em 2009, foram registradas 549 mortes provocadas em confrontos com a polícia – o que significou um aumento de 27% em relação ao ano anterior. Para o delegado geral da Polícia Civil, Domingos Paulo Neto, o número maior reflete o “trabalho policial mais intenso em locais violentos”. Enquanto voz oficial do Estado, o delegado surpreendeu a todos ao explicitar o posicionamento autoritário e assassino do Governo:

“Nós fizemos 124 mil prisões no ano inteiro. Nessas prisões, em operações de risco, é natural que ocorra a morte. Se for do marginal que reagiu, é melhor a morte do criminoso do que a do policial, que está arriscando a vida em benefício da sociedade, não é verdade?”
(Domingos Paulo Neto - Delegado Geral da Polícia Civil) fonte R7 notícias.

Diante da repercussão dos índices negativos, o secretário da Segurança Pública, Antonio Ferreira Pinto, elegeu o combate aos crimes contra o patrimônio como prioridade. E o resultado veio a cavalo. No início de Maio, mais uma vez os noticiários deram destaque ao aumento de homicídios quando da divulgação do aumento de 23% desses casos. O governo do Estado, surpreendido com os índices, tentou diminuir o impacto da crise tratando-o como “oscilação” e como fruto de esforços do governo e de suas polícias em conter a criminalidade.


Dos últimos acontecimentos

Nas últimas semanas, assistimos estarrecidos e revoltados, as notícias veiculadas pela grande mídia, acerca da violência da Polícia Militar do Estado de São Paulo dirigida a dois jovens negros.

Infelizmente, a forte divulgação dos acontecimentos nos surpreendeu mais que os próprios fatos, afinal, espancamentos, torturas e assassinatos não são novidades no tratamento da polícia de São Paulo à juventude e à população negra e pobre.

Eduardo Luís Pinheiro dos Santos, 30 anos e Alexandre Santos, 25 anos, tinham muitas coisas em comum. Além do sobrenome e de serem ambos trabalhadores motobys, eram negros! Talvez por isso a infeliz coincidência também em suas violentas mortes.

Eduardo foi encontrado morto no último dia 10 de Abril, após ser torturado. Alexandre foi espancado até a morte na frente da mãe, na porta de casa. Os dois foram vítimas da Policia Militar do Estado de São Paulo. Elza Pinheiro dos Santos, mãe de Eduardo, em momento de desabafo disse: “Meu filho foi morto por ser negro”. Maria Aparecida, mãe de Alexandre, em desespero relatou: “Eu tentava segurar a mão do policial e pedia pelo amor de Deus para que ele parasse de bater no meu filho”.

Paralelo à repercussão destes casos em toda mídia, a Baixada Santista registrou nas últimas duas semanas mais de 20 homicídios. Mais uma vez, a maioria das vítimas são moradores de periferias, jovens e negros. Os indícios são fortíssimos de que há em curso a ação de grupos de extermínio com a participação de policiais.


Negros são alvos preferenciais

Em julho de 2009 a Secretaria Especial dos Direitos Humanos, UNICEF e o Observatório de Favelas divulgam resultados de sua pesquisa, e os dados são ainda mais estarrecedores: 33,5 mil jovens serão executados no Brasil no curto período de 2006 a 2012. Os estudos apontam que os jovens negros têm risco quase três vezes maior de serem executados em comparação aos brancos.

“Há uma morte negra que não tem causa em doenças; decorre de infortúnio.”

A afirmação acima consta do artigo A Cor da Morte, publicado por Luís Eduardo Batista e colaboradores, na Revista de Saúde Pública, em 2004. Esta matéria apresenta as causas de óbito conforme características de raça, no Estado de São Paulo, entre os anos de 1999 e 2001. Tal pesquisa aponta que negros e brancos morrem vitimizados por causas diferentes. Segundo o estudo, a maior parte dos brancos vai a óbito por tumores ou doenças do aparelho circulatório, respiratório, sistema nervoso, congênitas, entre outras. Ao contrário, a maior parte dos negros morre por motivo não associado a doenças, como causas externas (violência, por exemplo).

O racismo que ganhou nova roupagem nos dias atuais é o principal fator pela condição de miséria do negro e da violência por ele sofrida. Pelo IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) da ONU, o Brasil se encontra em 63º lugar na colocação de países de médio desenvolvimento humano. Os pesquisadores Wânia Sant’Ana e Marcelo Paixão fizeram o mesmo estudo para negros e seus descendentes isoladamente e a colocação é 120º, colocação que denota as péssimas condições de vida do negro brasileiro.

A polícia de São Paulo está exterminando a juventude negra. Os pesquisadores Rodnei Jericó e Suelaine Carneiro do Geledés – Instituto da Mulher Negra realizaram um estudo do qual se extrai:

“Os dados registrados pela série documental “Mapa da Violência: os jovens do Brasil” , revelam que nossas taxas de homicídios são elevadas e tem como principal vítima a população do sexo masculino pertencente a raça negra. Negros é o grupo racial brasileiro mais vulnerável à morte por homicídios. O estudo aponta que no ano de 2004, a taxa de vitimização desse grupo foi de 31,7 em 100 mil negros, enquanto para a população branca foi de 18,3 homicídios em 100 mil brancos. A população negra teve 73,1% de vítimas de homicídio a mais do que a população branca (WAISELFISZ, 2006, p.58).

As iniqüidades raciais refletem-se na mortalidade da população negra e são decorrentes de condições históricas e institucionais que moldaram a situação do negro na sociedade brasileira. Os números revelam o que se deseja silenciar: a morte tem cor e ela é negra. Os jovens negros são as principais vítimas da violência, que vivem um processo de genocídio.

Para Major, Polícia Militar é racista

As evidências dos abusos e da ação criminosa das polícias de São Paulo são tão flagrantes e se dão a tanto tempo que, infelizmente, há a uma tendência a naturalização. Por essa razão, causa surpresa que denúncias surjam da própria corporação.
E foi justamente o que aconteceu quando da veiculação na grande mídia da dissertação de mestrado major da Polícia Militar de São Paulo, Airton Edno Ribeiro, Mestre em Educação das Relações Raciais e chefe da divisão de ensino do Centro de Altos Estudos de Segurança (CAES), que fez o estudo sobre “A Relação da Polícia Militar Paulista com a Comunidade Negra e o Respeito à Dignidade Humana: a Questão da Abordagem Policial”

Ribeiro, com conhecimento de causa, traça um forte relato sobre como a questão é tratada no interior da PM:

“há um silêncio na Polícia Militar paulista sobre os problemas referentes à cor, à negritude e ao racismo, tanto na relação com a população afrodescendente, como dentro da própria Instituição, onde a presença negra sempre foi expressiva entre as praças". – Fonte: O vermelho


Para o policial, características étnicas próprias e perfil socioeconômico e cultural diferenciados, dada a convivência com a pobreza, favorecem o surgimento de criminosos.


"É na realização diária da atividade de polícia ostensiva que se manifesta a individualização dos pensamentos do policial e de seus preceitos humanos, ou seja, estando o policial de serviço na viatura, sozinho ou com um companheiro, ele escolhe diretamente a pessoa a ser abordada ou influencia o outro policial a abordar. E nesse contexto a escolha da pessoa a ser abordada recai sobre o negro em qualquer situação, em sutilezas que tomam conta das condutas dos policiais no exercício do policiamento". Fonte: O vermelho

Em recente palestra proferida em São Paulo, o Major falou também sobre a percepção do policial que faz a revista. De acordo com essa percepção “o destino do negro é ser abordado”; “quem coopera não apanha”, “o policial negro não se sente negro”; “e negros esclarecidos irritam a Polícia”.


Da impunidade: de Robson à Flavio

A impunidade aos atos de violência policial é histórica no Estado de São Paulo.

Em 1978, o trabalhador Robson Silveira da Luz, foi preso e torturado no 44º distrito policial de Guaianazes, sob a responsabilidade do delegado Alberto Abdalla, que foi condenado pelo ato, mas até hoje não passou um único dia na prisão, pelo crime cometido.

Os Policiais Militares que mataram o dentista Flavio Santana, em 2002, foram condenados, presos e logo libertados.

Agora os casos de tortura e morte dos motoboys – Eduardo Pinheiro dos Santos e Alexandre Santos nos apontam ações cada vez mais ousadas, fruto da impunidade que acompanha as ações de violência policial no estado de São Paulo.

Foram vítimas de tortura, com Alexandre sendo enforcado diante da mãe. Os policiais militares agiram com requinte psicopático.

Há de se dar fim à impunidade da violência policial, sob pena de esta violência ganhar dimensões cada vez mais bárbaras.


Das iniciativas da sociedade civil, movimento e demais organizações

Não é de hoje que inúmeros defensores de direitos humanos, movimentos negros, movimentos sociais, sindicatos, parlamentares e familiares de vítimas da violência policial apresentam denúncias com suas respectivas provas, testemunhos e farta documentação relacionada ao tema e expõe suas reivindicações diante do Estado.

A maior indignação é pelo fato de que as arbitrariedades e o extermínio de pobres e negros são praticados em nome do Estado Democrático de Direito e supostamente em defesa da lei e da ordem.

A constatação é que o Estado de São Paulo, neste caso específico responsabilizado pela ação de seus policiais e demais agentes, comete sistematicamente graves violações de direitos humanos e o alvo preferencial dessas ações são as parcelas mais pobres da população brasileira, em especial negros e negras.

Em 19 de Novembro de 2009, véspera do feriado da Consciência Negra, movimentos negros e sociais apresentaram uma REPRESENTAÇÃO, protocolada junto ao Governo do Estado de São Paulo, na Secretaria de Justiça e Cidadania, no Ministério Público, no Gabinete do Procurador Geral de Justiça, na Defensoria Pública e na Assembléia Legislativa, com a Comissão de Direitos Humanos.
Em resumo, a Representação (cópia em anexo) relatou denúncias de violações de direitos humanos por parte da Polícia Militar de São Paulo, práticas discriminatórias, índices de desigualdades étnico-raciais levantados por organismos nacionais e internacionais e, como proposição, o documento apontou um conjunto de ações envolvendo o Poder Público e sociedade civil organizada.
Os únicos andamentos oficiais dados à Representação foram estes:
1) Reunião ocorrida em 10/03, do Núcleo de Combate ao Racismo da Defensoria Pública do Estado de São Paulo com representantes de entidades do movimento negro, na qual aquela Instituição demonstrou que possui disposição e prerrogativa para agir em defesa dos direitos coletivos e difusos tratados na Representação. A partir de então, a Defensora Pública Dra. Maira Coraci acompanha o desenrolar das atividades ligadas ao caso.

2) Houve trâmite perante a Comissão de Direitos Humanos da ALESP, com procedimento interno número 9080/2010, com parecer proferido pelo Deputado Relator em reunião ordinária do dia 25/03.
Infelizmente, a inércia absoluta e total omissão política por parte dos órgãos responsáveis pela segurança pública, principalmente PM, Secretaria de Segurança Pública e Governo do Estado de São Paulo, deu razão aos argumentos levantados pelos movimentos sociais em 19/11/2009, quando da referida Representação àquela data, demonstrando-se que há um genocídio em curso, e o grupo étnico racial vitimado pela ação violenta por agentes do Estado são jovens negros moradores de periferia.
Com a repercussão nacional e internacional dos assassinatos dos dois jovens trabalhadores motoboys negros, a Comissão de Direitos Humanos da Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo deliberou pela realização desta Audiência Pública sobre violência policial e racial, depois de pedido feito pela FEPPIR (Frente Parlamentar pela Promoção da Igualdade Racial) e da pressão do conjunto dos movimentos negros e sociais.
Em meio à repercussão dos assassinatos dos dois jovens motoboys negros pela PM, Movimentos Negros e Sociais protocolaram no dia 5 de maio desde ano, um requerimento exigindo uma audiência imediata com o Governador interino, Alberto Goldman, além de explicações públicas (protocolo 38391/2010, de 11 de maio de 2010). A resposta foi negativa. Neste mesmo período os 12 policiais militares acusados de assassinar o motoboy Eduardo Luís Pinheiro dos Santos foram soltos.

Hoje, dia 9 de Junho de 2010, fazemos uso deste espaço oficial da Audiência Publica chamada pela Comissão de Direitos Humanos da Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo, para registrarmos aqui nossas intenções, reivindicações e exigências, enquanto população negra, indígena e pobre.

Intervenção propositiva

Todos e todas temos ampla consciência das limitações de intervenção de um Estado com bases fundantes tão conservadoras e comprometidas com o “status quo” vigente. Bem como é também de nossa ciência o posicionamento e a vontade política ideologicamente comprometida de seus dirigentes.

No entanto, cumprimos nosso papel enquanto cidadãos e cidadãs e enquanto movimentos da sociedade civil organizada, ao ocupar os espaços de diálogo e cobrança existentes neste e Estado Democrático de Direito e, diante de um histórico e de fatos tão contundentes, apresentamos as seguintes reivindicações à Comissão de Direitos Humanos da ALESP:


• Demissão imediata do Secretário de Segurança Pública do Estado de São Paulo, Sr. Antonio Ferreira Pinto;
• Demissão imediata do Comandante Geral da Polícia Militar do Estado de São Paulo, Cel PM Alvaro Batista Camilo;
• Tipificação dos casos de violência policial, que resultem ou não em mortes, como crimes de tortura, conforme a Lei 9455/97;
• Instituição de uma CPI das Polícias de São Paulo, que vise desmantelar milícias, apurar denúncias/crimes e punir responsáveis;
• Fortalecimento das Ouvidorias e Construção de uma Corregedoria única, autônoma, controle e fiscalização por parte da sociedade civil;
• Desmilitarização e unificação das polícias;
• Debate Público sobre o conteúdo teórico e prático de formação para policiais, bem como a instituição de um Grupo de Trabalho por esta casa, para elaboração de legislação sobre forma e o conteúdo do treinamento e formação de policiais;
• Criação de Grupos de Trabalhos Temáticos que provoquem debates públicos e elaborem projetos de lei que atendam as seguintes demandas: Fim do registro de "Resistência seguida de morte" ou "Auto de resistência" para as execuções sumárias; Fim dos fóruns privilegiados para Autoridades e Polícias; Exigência de indenizações para todas as vitimas de violência e/ou seus familiares; Federalização de processos; Fim das ações violentas em despejos e reintegrações de propriedades; Direitos Humanos para população indígena e LGBT; Debate Público e elaboração de políticas de estado de promoção da reparação histórica dirigida à população negra e indígena.


domingo, 4 de novembro de 2012

Cidadania


Cidadanias
Vivemos num mundo complexo, mas que vende uma imagem, quase pueril, de
simplicidade, regida pelos desejos livremente acolhidos pelas pessoas.
A cidadania apregoada pela globalização neoliberal nos quer convencer
que o homem, livre e autônomo, rege seu viver e que, no livre encontro
das vontades individuais, mesmo egóicos, dar-se-ia um mecanismo de
regulação das trocas de serviços e bens necessários à vida. A
cidadania, neste olhar – um tanto quanto falsificador da realidade –
implica em ter a possibilidade de exercer – no mercado e sempre nele –
seus direitos e ir à busca de seus anseios. Cada vez mais, portanto, o
conceito de cidadania veiculado nos meios de comunicação de massa,
aparato ideológico de construção e manutenção do sistema político e
econômico, é tratado tendo como referência o indivíduo, quase que
entendido como um ser-para-o-mercado, em especial o tão querido e
propalado direito do consumidor, em contraponto aos “insuportáveis”
Direitos Humanos. Este é um ousado e desafiador olhar que olha e
concebe a todos a dignidade, o direito de viver (dignamente), existir,
relacionar-se, até mesmo de “poetar”. Um direito de todos, para todos
– todos mesmo – até mesmo àqueles que foram postos à margem da
sociedade do consumo, que não podem frequentar seus requintados
templos os Shoppings.
A cidadania verdadeira, porém, é derivada da polis, da vida citadina,
do encontro e da construção coletiva de espaços onde a troca de nossos
dons e potencialidades, bens e serviços são estabelecidos. E isto
acaba por jogar a luta pela dignidade do ser humano e de sua vida a
exigir, paulatinamente, a nos deparar com um sistema de exploração
gradual, crescente e de caráter inesgotável (aparentemente, já que a
natureza já está a limitar tais passos, apontando riscos à própria
vida no planeta) e que, sem o contraponto do “socialismo real”
globalizou-se e intensificou o sofrimento que submete os trabalhadores
e os povos da margem, postos – intencionalmente – no limbo da vida. A
luta política e o enfrentamento com os interesses do capital e do Deus
– mercado é a única possibilidade de tentar defender a vida e, quem
sabe, a vida digna para todos. Uma tarefa difícil e, às vezes,
esgotante, pois deveras desafiadora. Desafiadora, pois individualmente
somos provocados e chamados pelo consumo, pelo marketing, pelo bem
viver (igual a consumir) e anos enredar em um tecido midiático e
dramatizador da vida humana onde a vida, as dores, doenças e desgraças
são expostas para nos emocionar e, quem sabe, nos paralisar com o
sentimento de impotência e mesmo do reconhecimento do caráter perverso
do homem, sem qualquer percepção do processo massivo de desconstrução
de sua humanidade e até mesmo de sua vida. Estão aí os “nóias” a nos
denunciar e a revelar a faceta desumana de nossa sociedade, sem que,
infelizmente, a maioria se incomode de fato – apenas anseiam que sua
face dolorida e indagante sumissem de nossos olhos e de nossas
cidades, enquanto estiverem nas favelas da periferia de nossas cidades
serão bem toleradas...
O esvaziamento do sentido político da cidadania é, portanto, um
processo deliberado para anestesiar a sociedade e, de fato, deixar as
coisas como estão.
O neoliberalismo é um regime onde os Estados nacionais estão a
esvaziar sua possibilidade efetiva de construir e gerir suas politicas
internas já que, em grande medida, o capital e as grandes empresas
transnacionais detêm o poder e a tecnologia para transitar – até em
fração de minutos – de país a país e a impor, em grande medida com
apoio e suporte – político, institucional e até mesmo com força
militar – de instituições internacionais como ONU, FAO, UNESCO, OMC. O
fato é que o modelo econômico adotado que propugna que o livre mercado
– e sempre e cada vez mais ele como remédio eficaz – é a solução. E,
para “salvar” a economia e o desafio dos povos a receita é privatizar,
desregulamentar todo tipo de normatização e controle (até mesmo do
trabalho, é claro) para que os custos sejam menores- e o lucro DELAS
seja efetivamente maior – qualquer semelhança com as propostas de
partidos como PSDB E DEM é mera coincidência! As reformas da
previdência – que atinge diretamente os interesses e a vida dos mais
pobres, da privatização da saúde, dos serviços públicos e a
desestruturação do estado acabam por acontecer. É evidente que tais
reformas – e não as do caráter popular e progressista, como a tão
necessária Reforma agrária – apenas concentram poder e dinheiro na mão
de poucos, inclusive a nível mundial... O serviço público fica mais e
mais sucateado ou reveste-se de um custo altíssimo, o que bem denuncia
a Guerra da água na Bolívia ou a enorme pressão internacional com o
governo Evo Morales quando adotou, de fato, a promessa de estatizar o
gás – patrimônio nacional, enfrentando interesses econômicos
seríssimos, inclusive da nacional Petrobras.
A desregulação dos fluxos financeiros e de mercadorias e serviços
apenas globalizam e, de fato, esconde a superexploração maquiadora.
Mais do que isso, quando a Fox Com produz na china com um I Pad a
preços baixíssimos acaba por produzir desemprego “pelas bandas de cá”
e a exigir mais exploração e mais achatamento salarial, mais mortes.
Detalhes sórdidos que não precisam estar visíveis em nossas mídias.
Ocorre, porém, que a própria vida violada e violentada acaba por
exigir das pessoas que se organize e objetive sua luta para que a
sobrevivência seja possível. Assim é que os movimentos pela terra e
pela Reforma Agrária e a permanente luta dos movimentos sociais ainda
se faz presente. Avida assim exige! Conquistas foram se dando.
Alguns países já conseguem formalizar governos de caráter
progressista, de enfrentamento dos interesses do capital. Assim, além
de cuba – com suas contradições internas, a Venezuela, a Bolívia, em
alguns pontos a Argentina tem conseguido derrotar – aqui e ali – os
interesses do capital internacional e ganhar em articulação e
comprometimento, inclusive com maior consciência social. A Bolívia é
uma clara demonstração de como o povo simples começa a se organizar e
a impor limites e vontades ao governo, mesmo sendo ele de viés
progressista. A construção de um novo modelo não é uma tarefa fácil
nem rápida, pois deve objetivar-se no curto prazo com lutas de
sobrevivência, mas no seu modo de organizar-se e de articular-se deve
produzir uma forma e um olhar mais generoso, fraterno e solidário. O
socialismo não é um modelo a se gestar na cabeça de iluminados que se
faça facilmente, até mesmo pelo seu caráter popular e organizativo.
Tampouco pela cabeça de teóricos ou pensadores que criaram teorias e
estruturas politicas que não podem ser transpostas idealmente para o
momento presente, sem dialogar com os movimentos, os interesses e a
realidade concreta da vida. Lembremos ainda que o capitalismo foi
gestado por séculos, e segue a produzir erros e blasfêmias –
inevitáveis pelo seu caráter.
Paciência se faz necessária, mas uma paciência que se faça práxis e
nesta transformação social produza esperança e encontros vitais e
festivos de reconciliação do humano com sua autêntica cultura e vida.
Paciência de mãe, que gera vida.
Paulo Cesar Portellada